A lâmina estava gasta e abespinhava-lhe a pele. Raspava, raspava; arrancava mais do que cortava. Só lá para o terceiro corte, vendo o sangue pingar no lavatório, é que percebeu que não tinha que aturar aquilo, que tinha outras lâminas, novas em folha, guardadas na gaveta. Olhava-se ao espelho e via alguém que conhecia de vista. Não sentiu o álcool do aftershave atirado para o rosto senão como a campainha que toca na casa do vizinho de cima. Continuou absorto, distante, estranhamente desconfiado, até a ouvir vestir-se no quarto. Eram apenas sons desconexos, uma gaveta que batia, a porta do guarda fatos que rangia, a cruzeta atirada para a cama que caía em cima das outras, as meias subindo pelas pernas que rugiam suavemente. Meias; no verão? Acelerou-se o coração, esvaneceu-se o sono; limpou a cara, perfumou-se e vestiu a camisa. Camisa; como camisa, se estava de férias? Deu pouca importância à picuinha e dirigiu-se ao quarto. Ao vê-la, estarrecido, chamou-a surpreso: Aurora?
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