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Trago sempre comigo tudo o que possuo neste mundo. Tudo que tenho de meu, adquirido ou roubado, conquistado ou entregue, conseguido.

Não o corpo, que o hei de devolver às estrelas; nem o espírito, que se extinguirá no preciso momento em que as estrelas reclamem o que é, também, temporariamente seu.

Trago sempre comigo tudo o que possuo, tudo o que sou, porque apenas enquanto sou, nem antes, enquanto promessa, nem depois, com sorte, enquanto uma recordação duradoura, tenho algo que é só meu e o qual não posso dar, nem receber.

Tudo o que é meu, só meu, é um universo, pessoal e intransmissível, intransigente perante as vontades da promessa e da recordação.

Não possuo o meu corpo, nem a vida que nele tão efemeramente pulsa; não possuo a minha mente, nem a electro-química secreta que o anima. E ainda assim há um tudo que sou eu e não tu ou ele ou ela, mas apenas eu. Mas também tu e apenas tu. E esse nada que é tudo, esse mito que Pessoa tão eloquentemente definiu, não está em mim, senão em ti e tu em mim.

Sou, enquanto indivíduo, nada. Um nihil, descabido, pois mesmo esta atribuição não passa de um artifício de uma mente incapaz de absolutos. Não existo em mim porque, em mim, nada existe senão quando olhado por outro, ainda que esse outro seja eu próprio. Nada sou porque tudo o que possuo, e faz de mim o que sou, habita em ti. Tu, e apenas tu, és o receptáculo do que me define e, como tal, custódia de tudo o que possuo.

E é nesta reciprocidade que a realidade se constrói. Não porque exista, mas porque é percebida como tal tão somente no que sou em ti e no que és em mim. O monopólio de que se reveste contribui para a sensação de que é incontornável e, à falta de melhor palavra, real. Escapássemos à realidade e veríamos a crua condição que a todos nos liga. Que não existimos senão nos que, connosco, nos observam.

Sobre estar entregue a si
4. Perceção de causa e efeito