Saído de Ítaca, não és nada nem ninguém
Nada conheces senão o amor da tua mãe
Saído de Ítaca, tu és pela mão de alguém
Perdido na cidade, sem saber o que esta tem
Começas então a calcorrear, gatinhar e logo
A voar. Onde a cada dia se revela em ti o fogo
De quem abre como novos os olhos a cada dia
E um novo mundo recebes por companhia
Cidades, paisagens, obras, plantas e animais
Tudo guardas na tua mente e com os quais
Te constróis demoradamente quase sem perceber
Que nada de ti se pode para sempre esconder
Percebes que Ítaca ficou para trás e que estás a viajar
Num mundo de sonho que parece não terminar
Ao teu encontro, Lestrigões canibais e Sereias nuas
Surgirá um dia Poseidon castrar-te a carne crua
Irá querer meter-se na tua garganta para creres
Que Ítaca só será tua se na viagem sofreres
Até Calliope, bela, prazerosa e bem intencionada
Te dará o supérfluo da pobre vida banalizada
Mas tu, a tudo quanto te desvie da tua viagem
Que te impeça o ser, não prestarás vassalagem
Nem à ignorância arrogante dos deuses serás servil
Ítaca é longe, mas tu não vais perdido nem serás vil
Buscas a cada dia a nova luz que primeiro ofusca
Para depois te amparar livre em uma nova busca
Enchendo o teu barco, o teu cérebro, a nave espacial
De tudo quanto é belo, precioso, feliz e nunca banal
Certo dia, demorado a chegar, mas inevitável e real
Te dás conta que a Ítaca da partida é o teu destino final
Apontas-lhe então o Argo cheio e com um cansaço feliz
Ofereces o que recolheste aos outros enquanto sorris
Carregado de bens e sem sucumbir aos monstros
Aportas sem esperança de regresso ou reencontros
Chegado a Ítaca voltas ao que início e porém
Sabes finalmente que és algo, sabes que és alguém
* inspirado por Kaváfis. Imagem: Geeka.