Dantes, quando tudo era deus e escuridão, quando o amor era expresso com mão pesada e quando o respeito era mais uma das vestes do medo, todos sofriam.
Dantes, num dantes intangível, mítico e não verificável, a vida era assim simples. Para os que não tinham outra escolha senão a vida que tinham ou o fim prematuro da mesma, a vida dos sem escolha, dizia, era um permanente sacrifício. Tão permanente e tão absoluto que, tivessem escolha, por graça do destino ou por milagre saído da ignorância, não a veriam e, se por mero acaso a vissem, a temeriam e a rechaçariam, por ser contra a natureza da vida como a conhecem. Para os muitos poucos que tinham escolhas e com as que com elas se comprometeriam para a vida, a vida era sacrificada em nome de causas e/ou ideais, insondáveis aos demais. Ora por serem objeto de uma promessa de mudança perante as infindáveis e absurdas desigualdades que ditavam as vidas de uns e de outros, ora por serem um impulso rebelde daqueles que se podiam dar ao luxo de se anular, elevando-se pelo sacrifício.
Se para muitos poucos, o sacrifício surgia como condição rebelde para uma vida com sentido ou como extremo da empatia, para muitos outros, o sacrifício nada mais nada menos que o destino. Algures a meio, impunha-se a definição canónica: o sacrifício como a moeda de troca para uma recompensa futura e para lá da vida.
Mais tarde, e mais ou menos postas de parte as visões pavorosas associadas à mitologia, o sacrifício assume a forma de abnegação e isenção. No fundo, moeda de troca para a felicidade.
À recompensa futura, certa apenas na certeza impossível de uma próxima vida, sacrificavam-se os muitos porque, escapando-lhes a alternativa, se sentiam nessa ausência, e apenas assim, justificados. Sacrificavam-se os muitos poucos porque a escolha os elevaria, retirando-os da vacuidade da vida que eles apenas seriam capazes de ver. E havia ainda os que não sendo tão poucos assim, podendo escolher, recusavam em absoluto o sacrifício. A esses, afogou-os a história.
Mas isso era dantes, esse dantes, que foi ontem, em que tudo era deus e escuridão. Agora, neste agora que aparenta ainda não ser hoje, onde deus existe em prestações e a luz não ilumina mas cega, há, apesar de tudo, amor dado pelo o amor ao que se ama e respeito porque o exemplo de que veste a tal inspira. Um agora onde todos temos escolhas, ou melhor, um agora onde a possibilidade de escolha é apresentada como algo intrínseco ao ser.
Ou pelo menos, assim deveria ser. Se nada é inteiro e a luz não ilumina mas cega, a realidade é um deslumbre permanente que surge aos olhos dos que os semicerram e dela procuram se destacar. E nesse estado de alheamento para melhor compreender, surge a escolha. Não a escolha deste ou daquele, mas a escolha, substantiva, quase um tipo puro, definidor e intangível. Tal escolha apresenta-se, para os muitos, como uma ficção, arvorada a valor cardinal da vida. Fútil e perversa, na medida em que é uma escolha para consumir. Uma escolha para entregar a condução. Em última instância, uma escolha como base do destino da vida. Múltiplas escolhas, mas dificilmente uma escolha para pensar livremente ou para ser verdadeiramente livre.
Para os muitos poucos que têm verdadeira possibilidade de escolha, a vida continua maravilhosa como desde o tempo dos dinossáurios. Para esses poucos, o sacrifício continua válido e pertinente como sempre. Há causas e ideais pelos quais lutar; há musas e sonhos a capturar em palavras e em arte; há desafios pessoais a superar que merecem sacrifício.
Nos muitos que sem escolha cuidam escolher e com isso pensam ser livres, perde-se o sacrifício. Perde-se porque, nada mais havendo que a ilusão da escolha, o sacrifício deixa de ser uma via para o sentido, mas apenas um caminho a dor de uma existência vazia e sem gratificação possível. Perde-se porque qualquer escolha que implique sacrifício é interpretada não como abnegação e isenção, mas como dor, devendo ser, a todo o custo, evitada. E ao perder-se esta forma de abraçar o sacrifício, de o acolher como uma troca profícua, este torna-se tóxico e confundido sofrimento, passando então a ser objeto, sensação ou instrumento a evitar a todo o custo.
Se o indivíduo, sem escolhas reais, rejeita o sacrifício, a sociedade, o motor reflexivo que o condiciona e por ele é condicionada, favorece e amplifica essa rejeição na forma de suporte pelas escolhas fictícias, do reforço caricatural dos direitos humanos ou através da valorização de referenciais espúrios de felicidade e bem-estar. Referenciais estes, assentes numa noção de sacrifício como um impedimento para uma vida livre e plena de sentido.
Quando, neste hoje que parece ainda não ter chegado mas já com cheiro de amanhã, a mão pesada e o medo que ainda presentes se apresentam vestidos de incerteza e liberdade, dando dessa forma, um novo e fúnebre sentido ao sacrifício. Equiparado ao sofrimento, o sacrifício passa a ser combatido, por ser o principal inimigo da felicidade e da fruição humanas. Vilanizada a capacidade, interna e externa de se sacrificar, os muitos perdem a capacidade de, através de abnegação e isenção, darem sentido às suas vidas e com isso, abrirem caminho para uma vida livre, sem amo e sem altar.