Que é sonhar senão a porta para o que cada um deveria ser se fosse verdadeiramente livre?
- Tu sonhas?
- Sim. Sonho.
- Com quê; com quem; e quando?
- Isso importa?
- Sim. Importa. Mais do que imaginas.
- Sonho que entrei num talho, daqueles com um letreiro com a forma da cabeça de um boi, onde vendiam peixe acabado de pescar na praia debruada pelo mar azul e um muro feito de incompreensão que nos limitava a todos. Noutra noite, abri uma porta de uma casa que não conhecia, mas que era a minha, e por ela entrei na praça Cólon de Barcelona, tendo este me ameaçado, do alto da sua coluna e com as suas mãos sujas de sangue e ouro e avareza, que deveria voltar para a outra sala da casa, a pequenina ou para a cozinha, pois aquela não era a minha sala.
- Fascinante. E que mais?
- Sonhei que resolvi um problema tão complexo que ninguém sabia sequer que era um problema ou sequer que existia. Sonhei uma vez que era um vendedor de língua da sogra, vestido de branco e com um enorme cilindro bege a tiracolo. Os banhistas, grandes e pequenos, pediam-me bolas de berlim, cervejas, colas e batatas-fritas. Quando lhes dizia que vendia língua da sogra, olhavam-me, incrédulos, harmonizando uma farda estranha com um produto desconhecido e daí saindo nada mais que desconfiança e medo.
- E porque sonhas então?
- Sonho, quer queira quer não, quer esteja a dormir ou acordado. Sonho sempre que posso e mesmo quando não o deveria fazer. Sonhar é, no fundo, viver a vida que, estivesse o mundo alinhado, eu viveria. Diria mais, sonhar é vivermos a vida que, estivesse o mundo alinhado, viveríamos. Viver o sonho não é mais nem menos que viver a vida que cada um deveria viver. Uma vida que não foi conquistada; que não foi tirada a ninguém; uma vida tua e não as sobras das vidas rejeitadas pelos outros.
- Mas isso é utópico!
- Sim. Um sonho.
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