O inimaginável manifesta-se sob muitas formas de violência, dominação e predação dos mais vulneráveis. Todas são conhecidas, mais ou menos sentidas na pele, na bolsa, na alma. Quem é (ou se sente) mulher, conhece a violência na forma de uma constante objetificação, de ser olhada como propriedade, de objeto de desejo ou cobiça, de ameaça à sua integridade moral e física. Quem vive numa sociedade onde a cor da sua pele não é idêntica à da maioria dominante ou da socialmente prevalente, conhece a agrura de ver negados direitos básicos de acesso ao trabalho e à educação, mas também à saúde, à justiça ou à propriedade. Quem está na periferia das elites socioeconómicas, por insuficiência de habilitações académicas ou profissionais ou apenas por “má escolha de pais”, como se dizia entre a elite inglesa dos séculos XVIII e XIX, sente que o seu trabalho é uma marcha para lado nenhum, ou então, quando muito para o fim de uma vida insegura e vazia.
Porém, nenhum outro inimaginável recolhe maior censura que a profanação da ingenuidade e segurança de uma criança. Um parêntesis para lembrar que sociedades há onde o prazer sexual com crianças é encarado com naturalidade (pensemos nas noivas infantis em alguns países muçulmanos, na Índia e nos Estados Unidos). Por cá e por muitos outros locais, a pedofilia, na sua forma consumada, pois muitos a sentem e com isso sofrem, se abominam e tudo fazem para nunca ferir uma criança, é um dos mais odiados crimes. São faladas cotidianamente, agressões a pedófilos ou suspeitos de pedofilia em ambiente prisional; de pais e/ou familiares fazerem justiça pelas próprias mãos; e de comunidades se insurgirem à menor suspeita de atividade pedófila no seu meio. Sem menosprezo pelo trauma causado pela violação, os danos imediatos e a longo prazo de um ato sexual consumado com uma criança, ocupam um lugar à parte no imaginário do odioso, por ser um terrível trauma com que a criança, depois o jovem, mais tarde, o adulto, se veem obrigados a viver para o resto da sua vida. Mas também pela traição à inocência e pureza com que gostamos de olhar as crianças.
Agora, imaginamos nós, os crentes no que a humanidade tem de elevado e digno, que qualquer organização repudiaria, sem hesitação, qualquer violação, abuso, moléstia sobre crianças e jovens. Que trataria de expurgar todos os seus membros nefandos, viciosos e desprovidos de empatia das suas fileiras. Que tomaria medidas internas e externas que impedissem, internamente, a arregimentação de seres perturbados e de sexualidade doentia, implementaria normas de conduta que promovessem uma vivência saudável e, externamente, que o contacto dos seus membros com crianças e jovens fosse, a todo o tempo, escrutinável.
E, no entanto, convivemos sem rebuço com uma ceita religiosa milenar, controlada exclusivamente por homens, e onde as mulheres lutam há dois mil anos por um papel que não seja o de santa ou o de prostituta, que tem um traço milenar de abuso daqueles que diz proteger e manter alinhados em direção ao que sabemos (e que eles também sabem), ser uma descarada ficção. Não só abusam dos que neles confiam as suas preces e razão de viver, como, resultado da autoimposição de um modo de vida impraticável, justificam a desigualdade em nome de fantasias. Não contentes com o privilégio social que detém, predam crianças, os mais fracos e os mais perfeitos entre as ovelhas que ferem com a sua sobranceria e desconcertante desligamento da realidade.
Então o que nos cala?
Atribui-se a Hipátia de Alexandria (séc. V) a afirmação de que todas as religiões dogmáticas são falaciosas e qualquer pessoa com respeito por si mesmo, nunca as poderia aceitar como finais. Yuval Harari, por seu lado, inclui as divindades e religiões no rol das imaginações partilhadas, tais como democracia, bondade, dinheiro, vermelho, linguagem ou outras construções sociais. Crentes ou não crentes, é dever de todos os seres humanos, libertos ou não do jugo da falácia da divindade, de expor os membros clero da igreja católica que são pedófilos ou que calaram perante atos pedófilos de outros, pelo que são: uma casta privilegiada de alienados, doentes e perversos, que procuram apenas a perpetuação do seu poder e a proteção dos seus membros, mantendo vivo o medo perante a ameaça de um castigo eterno que não tem lugar neste universo. Homens coniventes com outros homens, maus e viciosos, que se apresentam incontornáveis na preservação da moral e dos costumes que tão levianamente desdenham. Vermes, cujo poder é assente na maior das mentiras porque, entre dezenas de razões objetivas e verificáveis, fica esta: se existisse o tal deus a que se vergam e esse tal fosse fiel aos ensinamentos que dizem ter transmitido para benefício da pessoa humana (ou lá o que isso é), seguramente que esse tal seria o primeiro a ceifá-los.