Numa pedra aquecida pelo sol do inverno mais frio de todos os invernos que se registaram como invernos frios, lisa à primeira vista, mas rugosa o suficiente para que líquenes crescessem à velocidade das eras geológicas, formando nela um tapete semi contínuo, avesso à geometria das pessoas, aquecia-se, em vigília assaz indolente e incaracterística aos seus, um pequeno lagarto de corpo em tons de verde e cabeça vermelha. Pouco nele sugeria vida, aparte do ténue respirar que fazia com que as suas costelas se expandissem e contraíssem em espaçados movimentos compassados, quase nostálgicos. Não fora por esse movimento e dir-se-ia o pequeno lagarto parte do tapete de líquenes que o circundava, tão imóvel e camuflado, aparte da cabeça traidora, se apresentava. Poderia até ser confundido com um pequeno brinquedo aos olhos inocentes de um menino curioso. Ou mesmo uma estátua imponente e atemorizadora para um qualquer insecto que, atraído pela humidade acumulada nos líquenes, a eles se dirigisse a aplacar a sua sede. Para os demais, era um lagarto em tons de verde, cuja cabeça vermelha o denunciava. Ave que passasse ou pairasse por ali, sempre à cata de alimento, não hesitaria a bica-lo, ali ou no ninho, com a prole. Petiz mais crescido, igualmente curioso, mas substancialmente mais audaz, por certo tentaria deitar-lhe a mão lesta e com ele judiar ou aplicar-lhe tratos, o que faria do referido petiz um judeu ou um tratante, que, nos tempos que correm, vai dar no mesmo. Também outro qualquer bicho, medrado o suficiente e de dentuça afiada, faria dele refeição, ainda que magra e, consequentemente, de pouco sustento. Perante tamanhas ameaças à sua precária existência, fazia delas o lagarto, ora por ignorância, ora por incúria, ora por se saber defendido, pouco caso. Limitava-se a existir, pousado na pedra, atento, temerário ou imprudente, mas independentemente da razão, imóvel.
Tão imóvel quanto o pequeno lagarto, banhado pelo mesmo sol e imerso na mesma serena cacofonia do prado imenso, o filósofo, ao seu lado na mesma pedra, tapava a calva com o trapo que antes lhe cobria as costas. Vendo que apesar do seu gesto, o pequeno lagarto permanecia imóvel, prosseguiu dizendo que as suas vidas, a do pequeno lagarto e a do filósofo, teriam o mesmo valor. Para começar, dizia, partilhavam o mesmo sol, eram filhos da mesma Terra e pó das mesmas estrelas. Depois continuava dizendo ao pequeno e atento lagarto que se comiam seria porque ele, o pequeno lagarto, cederia ao impulso de matar a fome e crescer, ao passo que ele, o filósofo, o fazia apenas para manter o desconforto em níveis que deixassem pensar. Embora as motivações para comer aparentem ser diferentes quer em propósito, quer em valor, são na realidade resultado de uma mesma força, a exigência de ser. Ambos, postulava, existiam, eram, na medida em que a sua natureza os obrigava e, simultaneamente, permitia e que a liberdade de um para matar a fome e crescer e do outro para pensar, não era mais do que a tinta com que pintavam as paredes das suas prisões com motivos de árvores e prados e montanhas e mares e céu e estrelas e infinito.
Perante estas reflexões, o pequeno lagarto que até então permanecera seráfico, mirou o filósofo com andrajos por chapéu, e proferiu: “–A nossa prisão, ainda que real, só existe se a imaginarmos”.