Cartas do Vampiro Textos

Virginia

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Virginia era uma rapariga que, para melhor compreensão, deverá recorrer-se a uma fantasia e dizer que deus a fez. E que a fez com grande empenho, gosto e mestria, de baixo para cima, tendo, à medida que subia, perdido o fôlego, ou a paciência, ou as duas coisas. De tal modo a fez na direção do céu que, começando pelos pés, toda ela havia sido moldada a torneados firmes, voltas caprichosas e formas generosas, mas delicadas. Assim seguia linda pernas esguias acima, anca feita a cálice de túlipa; ventre liso, ponteado por um umbigo imaculado, como se tal pudesse ser; seios generosos e desafiadores da gravidade e dos bons costumes; ombros e saboneteiras esculpidos a talhe-doce. E perante este remate de perfeição, o criador (ou criatura) encheu-se, descuidou-se, ficou sem tempo. Ou então entregou os remates faciais a um serafim, canhestro e invejoso. O resultado foi que Virginia pagou caro o investimento feito no seu corpo de alabastro e saiu feiota.

Para piorar a situação, a sua mãe, confiada no aforismo “Feia no berço, bonita à janela”, e sendo uma mulher devota, resolveu proteger a sua primeira filha com um nome que lhe ditasse uma conduta de donzela: Virginia. O pai, homem de leituras prosaicas, logo lhe veio à mente a revista editada pelas Edições Pirâmide, entre 1974 e 2005, cujo nome não era mais que o diminutivo com o qual a sua esposa tão carinhosamente chamava a filha. No entanto, conhecendo o caráter beato da mulher, e não querendo abrir um cisma no casal por estar a par de tamanha depravação, engoliu calado e lá foi ao notário registar a catraia.

Virginia cresceu e tornou-se, como já descrito, uma adolescente que fazia parar o pouco trânsito dos anos oitenta. Na praia onde fazia campismo, vestia, por imposição da mãe, biquinis que, apesar de muito fartos em tecido e descrição, não conseguiam esconder o corpo escultural que tinha. Quando a viam ao longe, os rapazes, garotos que são, explodiam em alarves e graçolas sem nexo nem decoro. Ao aproximarem-se, davam meia volta e, jocosos e desapontados, diziam “Que pena”, ou algo semelhante.

Virginia aparentava ser imune a tais vulgaridades. Mantinha-se contida e casta, ora brincando com o seu irmãozito na areia molhada, ora conversando e rindo com raparigas, suas amigas do parque de campismo, todas da sua idade. Não se dava com rapazes, que a mãe reprovava e o pai, por certo influenciado pela mãe, ainda que sem nada dizer, desencorajava. Porém, havia nela uma chama que mantinha o desejo de descobrir e de se entregar. Tivesse a ido buscar à mãe, uma mulher voluptuosa, mas tolhida pela religião, ou ao pai, um homem que manteve o bom humor e alguma da malícia da juventude, Virginia, a espaços, em olhares, logo reprimidos, mostrava-se mulher.

Um dia, num daqueles bailes dos parques de campismo, onde os rapazes e as raparigas escapavam aos ditames e à rudeza da sociedade portuguesa ainda verde na democracia, ao ver a Virginia encostada à parede a bater o pé, convidei-a para dançar. Há muito esqueci a música que passava, um qualquer pop inglês, por certo. Por coincidência, poucos minutos depois de termos iniciado a frenética e algo trôpega dança, o primeiro de três slows começa a tocar. Sabendo quem era a Virginia, perguntei-lhe se queria continuar a dançar. Ela sem responder, colocou as suas mãos nos meus ombros. Agarrei-a pela cintura, sem a apertar contra mim e começamos a dançar.

Estranhei que os seus olhos percorrecem incessantemente o salão onde nós e mais umas dezenas de miúdos dançávamos. Quando os seus olhos serenaram, lá para o fim da primeira música, e se fixaram nos meus, percebi que se assegurava que os pais não estavam. Aí, apertou-me com a força de um desejo que há muito se prepara para aquele momento. Apertei-a nos meus braços e assim ficamos, muito juntos, dançando lentamente. Senti a sua face e o cantinho da sua boca grande colada à minha e o seu corpo firme contra o meu escanzelado e ósseo. Senti-a verdadeiramente entregue à música, à dança e a mim, um seu instrumento no desígnio que planeara antecipadamente. Lá para o fim da terceira música, como uma maré que sobe sem que se dê por ela, mas indómita, apertou-me com força e, depois de parar de dançar por um segundo, entreabriu a boca para exalar como se tivesse chegado ao seu destino. Fê-lo como quem se desprende de um fardo, de um cinto que aperta ou chega ao cimo de um longo lanço de escadas.

Olhou-me com olhos tão meigos e sábios como não voltaria a ver senão passados alguns anos. Limpou o suor que havíamos acumulado nos faces que ainda há pouco se tocavam. Deu-me um pequeno beijo e despediu-se com o mais belo sorriso que lhe havia visto.

Pinto da Costa
A mãe que raptava meninas