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Queria ser um gnu e deitar a correr pela savana como um caribú que não tem pouso nem cama, numa vida corrida e sem chama. Ter por deus a erva e por demónio o dente, nas nuvens me guardaria Minerva, verdejando o destino à minha frente.

Tantos dias, tantos anos carregados para trás e tu ainda aqui estás. Segues colada a um corpo perdido da sua alma que se olha sem reconhecer nele a sua morada. Provavelmente sabes que quase não respiro sem ti. Se quase vejo que o mundo é belo é porque tu estás nele e nele comigo. E eu contigo, presente ausente, sustido por um fio de erva, de ti resisto.

Fosse gnu, e serias o meu verde alfa e o meu líquido omega. Fosse caribú, e meu único receio seria anunciado no zumbido donde tu nunca estás. Fosse eu bicho e seria livre para não ser; teria sentidos para não sentir; não me estalariam os ouvidos com as vozes que me dizem que todos vão morrer; que vou partir os tornozelos ao descer as escadas; que sair de casa contigo é perigoso.

Fosse besta, apenas besta, e seria mais humano. Ter-te-ia por companheira na forma de chuva distante, anunciada por relâmpagos e trovões; ter-te-ia por companheira na forma do degelo, anunciado por inundações de raios de sol. Fosse eu besta e só viveria para ti, ausente de mim, sem demónios nem voragens. Apenas luz e alimento.

Nunca conhecida a vontade, há muito que acabou a resistência e agora esgota-se a paciência. Que mais restará para me manter onde nunca quis estar?

Tenho-te porém no meu pulsar. Quer esteja em ti, quer esteja a cem quilómetros de ti, és em mim, gnu, a chuva que cai e me faz correr, me impele a seguir um caminho sem fim, a não ceder aos passageiros que, mesmo não pagando bilhete, mesmo cuspindo para o chão e assustando aquele que se julga maquinista de seu corpo, não consigo expulsar.

Ninguém reparou
Carta a um terrorista