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Que fizeste à minha pessoa que se inquietava a cada dia, a cada passo dado na incerteza e no questionamento? Dormentemente lúcido como a um permanente sonhador compete. A minha pessoa, que sofria com os seus impulsos, que encontrava beleza no inesperado da banalidade dos dias, que fluía pelas páginas de livros electrónicos, alternando entre ler e escrever, para depois deixar-se levar na admiração do mundo, em paz, em dor, em dúvida, em prazer…

Onde pára a minha pessoa? Que lhe fizeste? Tu que não deixas lugar ao sonho, ao vagar por cidades imaginadas nas velhas ruas da cidade que abraçam como uma velha mãe e ao vogar por montes, cada vez mais azuis, pousados na lonjura do olhar. Tu que apagas todas as retas do prazer e unes as curvas da obrigação umas às outras, numa sequência sem fim, em chicana, anestesiada por manhãs iguais, por tardes iguais, por dias indistintos de cegueira perante o belo, o invisível, o pequenino, o amor…

Que fizeste à minha pessoa, que lhe vejo apenas a casca. A pele, largada, não por o ser lhe ter crescido, mas apenas porque despreza aquilo que se tornou. Ou será a pele, apenas a pele e nada mais, tudo o que sobra do ser que foi a minha pessoa. Serei agora como uma estátua de cera que apenas evoca, mas já não é. Como um livro do qual restou apenas a capa. Como uma pessoa que em tempos foi algo e agora é qualquer coisa.

Tu tempo, devoraste a minha pessoa e deixaste uma outra no seu lugar. Que fica órfã de ver, perdida na cegueira branca, esquecendo aos poucos a cor dos dias. Que fica fria do calor de ouvir, à medida que se esbatem os sons da cidade e dos montes azuis. Que fica serena, impávida e límpida, à medida que a memória do que era é substituída pelo silêncio que se tornou. Silêncio de dúvidas, silêncio de inquietação, silêncio de dor e felicidade.

A minha pessoa não está mais aqui. No seu lugar, ficou só uma folha branca. Perfeita no seu recorte, no rigor do seu perfil e imaculada na sua brancura cândida e fria. Não reage, não se alegra nem se entristece. Vive metamorfoseando-se de avião ou de barco de papel. Por vezes um envelope e outras, apenas uma folha onde alguém nela verte a sua pessoa. Em altura alguma, essa é a minha pessoa, o que fui ou o que ainda me lembro de ter sido.

Quem és tu e o que fizeste à minha pessoa? Porque me quebraste, endireitando-me? Porque me levaste as arestas, os rombos, as falhas e as cicatrizes? Dei-te uma pessoa melhor, dizes tu, galhardo. Deverias agradecer. Até agradeceria, mas sinto falta do que fui e o que me fizeste, não sou eu.

A vida de coração partido
Exercício 1