Sentado : Sentou-se, como fazia desde que se lembrava, na cadeira no centro mais soalheiro do armazém devoluto. Era um armazém estranho. Nos andares superiores de um arranha-céu que, por ter as fachadas envidraçadas, mostrava mais do mundo que de si, altaneiro e triste como um castelo desarmado, tinha janelas por paredes sem ameias que enchiam de luz fria o sujo chão e as espessas colunas, revelando, nele e nelas, os despojos de antigas saídas, sempre apressadas, de prévios ocupantes. Destacado do centro, como se de um reduto se tratasse, um grande bloco de betão guardava espaço para o outrora incessante vai-vem do monta-cargas e se recortava entre WC, kitchenette, economato e bocas de incêndio. Velhos jornais espalhados pelo chão, contavam as vidas dos mundos que passam e que se transformam em memória, que depois vertem a história e, por fim infundem o mito que a sua cabeça tratava, diligentemente, fazer passar a saudade de tempos nunca vividos. Nas colunas e tetos, jaziam evidências de vida; marcas pintadas a spray assinalando onde ficariam os bebedouros, corredores, pontos de espera ou limites de escritórios, salas de reunião ou áreas de acondicionamento de mercadorias. Ganchos como dedos que perderam a batalha contra o que suportavam, apontavam do teto na sua direção, como se ainda chorassem os cabos, candeeiros ou condutas que em tempos sustiveram. A memória da cidade, em baixo e à volta, é filtrada pelos jornais e letreiros garrafais colados aos vidros, que ora frustram olhos curiosos dum espaço vazio, ora cativam olhos desejosos de o ocupar. O ar está fechado sobre si próprio; não se mexe, nem que sentado o sopre, nem que sentado o sorva pelas narinas e, sentado, o devolva ao mundo pela boca. O mesmo ar guarda nas suas moléculas as palavras dos que por ali entregaram a sua vida a caixotes, a paletes e a encomendas e infinita papelada que, mudas, entravam e saíam, num afã rotineiro, de atividade parda.
Sentado, mas não imóvel na vida imaginária que projeta do olhar, é o absoluto de si. A essência da existência. O esteio do ego numa prisão sem muros. O espaço à sua volta é palco universal, onde um caleidoscópio de emoções cultiva uma panóplia de tramas, aventuras e diálogos crepusculares. Faces cândidas enfrentam sorrisos sardónicos, digladiando-se em batalhas de expressões faciais apenas sonhadas, mas sentidas como verdadeiras, e repetidas ao limite da exaustão, de uma terna e discreta loucura, como se a sua memória não passasse de uma engrenagem perra e o que visse não fosse mais do que a verdade. É o mundo que lhe corre à frente, sem que nada faça para o agarrar senão prendê-lo e dominá-lo com o olhar.
Ali se senta, naquele lugar, no centro do espaço abandonado a um universo inteiro que é só seu e que partilha com o mundo dos homens e das mulheres que sonham a vida que sonham, das nove às seis e meia, de segunda a sexta, ou aos sábados. Ali, onde a vida se cumpre, apenas o sonho lhe trás o prazer de não ter de estar noutro lado de sentir que não é mais que imaginação. Apenas ali, rodeado de solidão, está em casa. Livre da vida dos outros, imaginada e algoz, é cativo da liberdade que sonha ter.