Fosse quem fosse, dissesse o que dissesse, nunca seria e nunca diria, senão o fingimento de ser e dizer a sua dor como uma dor que dói apenas ao seu reflexo. Uma dor de mutismo estridente, arco-íris perante sentidos daltónicos; feita com nada mais do que o desespero de ser livre, de nada lhe guiar a mão, de não ter outro amo senão o peso de ser quem é.
Fosse a dor que sente verdadeira e seria o mais feliz dos desgraçados. Feliz na desgraça, pois aí encontraria propósito para uma vida que começa e acaba sem que nada possa dizer ou fazer. Teria uma causa com que se cobrir, armadura ideológica que lhe daria a insensibilidade que precisa. Esteio para a superação necessária à valorização da graça de ser um desgraço. E então, ajoelhado, olhos vazios no vazio das alturas, rasos de água beatificada pelos olhos secos que o fitam, arrancaria a roupa do peito e diria a si próprio, e todos os outros diriam com ele, Como não, se tamanho é o seu penar. Pois tão grande é o sofrimento que vivê-lo é por si só, pesado castigo. Choraria, e todos lhe dariam o merecido conforto; derrubaria mesas e chutaria cestos, e com isso não se agastaria nem sobre ele recairia mácula, e um séquito de condoídos lhe emendariam os atos desesperados na esteira da destruição que, não ele, mas a dor, a tão grande dor, deixava. Dar-lhe-iam coisas, de comer, de beber, de usar por agasalho, como quem diz, sem palavras, Toma lá, aconchego-te. Dar-lhe-iam afetos, dar-lhe-iam abraços e palavras meigas de incentivo; chorariam com ele, sabendo que em vão, pois graça alguma o faria sorrir, afago algum o sossegaria e nenhum sol, alguma vez, o aqueceria.
E essa dor o levaria ao propósito do ser maior, ao mais intestino do viver, de realizar, de forma superior, o duplo imperativo biológico que o sustém: manter-se vivo e eternizar-se. Vivo, estranhamente vivo, como um anel de fada, expandindo constantemente, estiolando em direção ao infinito. Eterno, falsamente eterno, enquanto apenas houver tempo que possa contar e lamentar perder.
Mas a dor que deveras sente apenas existe em si e não é forte o suficiente para o fazer arrancar as roupas do peito, derrubar mesas no seu caminho, nem suscitar noutros, sentimentos de empatia ou compaixão. A sua dor é estranha aos demais mas também estranha a si; como se fosse o único sobrevivente de um planeta que ninguém sabe existir, portador de um segredo apenas por si conhecido, dono de uma paixão nunca verbalizada, captor de alguém que a ninguém faz falta.
Dor fria que o beija com a suavidade da cabeça de um martelo. Dor mansa, quase acolhedora, de mortalha posta por um amigo que, no final, lhe afaga a fronde e lhe devolve uma lágrima. Dor querida, na perspectiva da alternativa que desconhece.
Fala mais alto o silêncio da indiferença; da inconsequência, do despegamento. Cega-o o clarão da noite indiferente, inconsequente perante a luz que grita a plenos pulmões e que nada mais ilumina que a insignificância das ténues pegadas que deixa na baixa mar e que olha, dissoluto, como único legado. Exige de si o que sabe não ter e dos outros o que sabe não merecer. Queima tudo o que conseguiu: feitos, amigos, erros, coisas, pensamentos. Dentro dos seus olhos, a história cheira a terra queimada. Na sua cabeça, pica-lhe a voz lançada a um infinito sem ouvinte nem eco. Está condenado a desaparecer e isso leva-lhe tudo. Tudo o que ninguém, nem ele, quer. Tudo, excepto a dor.