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Dormindo, é estaca caída, despido do ser, qual cela vazia que, dum panoptico sem propósito, ninguém observa. Vai treinando estar morto, desaparecido do mundo, do seu e do de todos os outros. Porque, se não está nos mundos deles, então eles, enquanto dorme, não estão no seu. E assim ficam, os mundos de todos e todos neles e ele, numa “morte leve”, como diz certo Pessoa. Ele, inerte, levemente morto e em parte incerta e eles, levemente em paz, por não o terem nos seus mundos.

São estas leves mortes intermitentes que lhe tornam a existência suportável. Pois a existência em contínuo trás-lhe o omino da consciência, o espéculo aberto do futuro sombrio e o cada vez mais pesado carro da memória. Apenas dormindo, alheio a si, ausente do seu ser, esquecido do que é, náufrago o seu corpo da mente morta, pode avançar inerte pelo tempo, sem o sobressalto da hora por passar, do horror do amanhã, do desespero da eternidade.

Dormindo, é como as nuvens do céu não velado que agarra com os dedos do olhar. Aquelas nuvens inefáveis, plenas de não existência, que ninguém vê, avião nenhum atravessa ou oceano algum alimenta. Porque são as dele e emanadas de si, para que nelas desapareça. São a exérese esfumada, imponderável e intangível da consciência, no ato fundador da morte treinada que é adormecer.

Tal como elas, entre o céu e o nihil, sem dimensão por que se meça, cor que amacie ou espevite ou temperatura que acalente ou refrigere, fica, sem estar, sem partir, entre o nada e o coisa nenhuma do entre o adormecer e o acordar. Inconsciente de si, como se outro em si, que não encontra e desconhece, tomasse as rédeas pelos breves momentos do sono e levasse o que deixou deitado na cama por tempos e lugares de impossibilidade quântica, onde tudo é simultâneo e os acontecimentos se apresentam repetidamente pela primeira vez. 

Saem saltitando sobre as nuvens que nada são senão depositárias do sonho que lavram e da qual chove, a espaços, esmorecida memória que seca aos primeiros raios do acordar; as nuvens leves, de branco emprestado ou cinzento projetado, permitem que passem pelas sombras que deixam para trás, sem marca do que são, sem mágoa do que carregam. E assim dorme, em tutelada solidão, incólume a si.

Perdido do sono, como estátua dum museu do imaginário que se anima saídos os visitantes, emerge acordando para o excesso dos sentidos. As unhas que crescem, o cabelo que roça na roupa, os olhos que secam entre o abrir e fechar de pálpebras. Volta-lhe o eu inteiro para a dor de estar de volta, acordado e consciente. Foge, enamorando-se do mundo, mas sente os tornozelos quebrar a cada degrau que desce; canta a cor das gaivotas, a música dos olhos meigos, a beleza dos vírus triunfantes e sente a dor de respirar, do sangue a correr, da fome, do frio e do calor; respira o sabor triunfante de deixar a eternidade nas palavras com que pinta o que os olhos esculpem e desespera perante a sentença de vida que tão casualmente lhe foi dada.

Porque não dormes então, porque não te separas levemente e, levemente, caminhas de volta ao não-tempo e ao não-espaço e acompanhas as nuvens, deixando as sombras para trás?

Porque há tanto para pintar.

E nem antes e nem depois.

C de Camarada 25
Vento Norte