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[Afogamento — (s. m.), acto de afogar ou afogar-se; sufocação.]

— Que fazes? — Tenho uma epifania. — Então – e pergunto-to apenas para que disso te dês conta – porque sei eu que em meia hora estarás morto? — Porque me dei conta que não existes. — Não existo? Se falo contigo… Se te dou esta epifania… — Não existes da forma que sempre acreditei que existisses. Não existes porquanto te vejo inconsequente. — Inconsequente. Eu? — Sempre te achei criador do mundo, do céu e da terra, das coisas e dos Homens. Sempre achei que tinhas sido actor ciente e voluntário da tua obra; estudei o teu percurso: primeiro, mestre criador depois, professor disciplinador e por fim, pai amoroso que se envia a si próprio para nos guiar para a idade adulta. Compreendo agora que não tiveste escolha senão dar início ao universo,  e ao tempo, e aguardar. Vejo finalmente como as rédeas do nosso destino e do destino daquilo que tocamos, nunca estiveram senão em nossas mãos. Desde os tempos primevos, em que, em arbóreos ninhos, nos encandeavam estrelas ou nos mesmerizavam as primeiras chuvas da estação húmida; desde que, macacos, víamos o mundo na procura da próxima refeição, até ao despertar do padre para o ovo cósmico que o cientista não quis ver, refutando-o, temendo ter de te reconhecer como te reconheço agora.  Muito me dói, ver-te assim diminuído, sacudindo e dobrando a batina que deixo na areia. — Que queres? É nova e é pena estragar-se. Vai ser uma relíquia, sabes? — Apercebi-me que sempre fomos órfãos; que nos entregaste a nós próprios, éones antes de sequer nos apercebermos da nossa condição. Tudo que fizemos em teu nome, fizemo-lo porque assim o quisemos, porque a tais actos nos conduzimos. Todas as preces, todas as injúrias, todas as razões, todos os cultos e todos os cismas, em vão. Até os que negam a tua existência, se bem que sem se aperceberem, te reconhecem como tal. — Os sapatos, leva-os o mar. Vão fazer parte do mito; vão dizer que foste ao fundo com eles e, já morto e para que te encontrassem, foram retirados dos pés por dois anjos. Na verdade, o mar leva-os e perdem-se para sempre. — Esperava-te no meio de nós, urdindo, gizando, afagando, ceifando indiscriminadamente; no fim, saíste-me uma união subatómica: tu estás em mim tanto quanto eu estou em ti. Saber que te eriçam os cabelos, que gravitas, que te manténs unido a ti próprio e que sentes a passagem do tempo, é demasiado para mim. O teu poder sobre mim é nulo, ainda que queiras, nada podes para impedir meus intentos. — Não é verdade, dobrei-te a roupa. Ou será que a dobraste tu? — Duvidas? — Duvidarei eu, ou duvidarás tu que duvido eu? — A água está fria. Vens? — Nadas bem. Tão pouco esforço e já estamos a costa se perde. — Canso-me. — Queres que te abra o mar e caminhas de volta? Queres que te mande uma árvore derrancada na maturação dos frutos? Um abaixamento anormal da maré  que expõe um banco de areia? — Não farás tal. Não farás porque não podes. — Vejo-te assustado. Arrependes-te? — Não. Assusto-me apenas; não é esta a minha natureza. — Então porque o fazes? Aceita-me como sou. É tão vil o meu ser? — Não consigo. A vida toda, toda, vivi para o pai, esmerando minha conduta para o agradar, temendo o seu juízo perante as minhas falhas. Descubro um pai ausente, desconhecedor dos seus filhos, ausente e indiferente; é demais, afundo. — Compreendo. Tens frio? — Sim. Tenho sono; já não mexo pernas nem braços. — E agora? — Estala o peito; não consigo manter mais a boca fechada. Ó meu Deus, onde estás? Porque me abandonaste? — Estou aqui; não desesperes, dá-me a tua mão. — Tenho os pulmões cheios de água; sinto um fogo imenso a invadir-me o corpo; é doloroso, Senhor. Senhor, salvai-me! — Aqui, estou aqui! — Senhor, perdoai-me; acolhei-me no Vosso Reino. Senhor…

Excerto de “Manual do Suicida”, 2007

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