Homines quod volunt credunt
A História é, sabemo-lo, queiramo-lo ou não, o relato dos acontecimentos passados. Como todas as ciências ou disciplinas científicas, tão vasto é o seu objeto, que o seu seccionamento se torna imperativo para um mais, ao mesmo tempo, circunscrito e abrangente rigor e entendimento desses acontecimentos. Percebe-se então que se chame de História (ou designação conexa) a produções tão diversas como o relato contextual dos acontecimentos grandiosos de uma sociedade ou cultura; a toda a sequência de eventos humanos desde a aplicação da escrita para registo, mais ou menos metódico, dos acontecimentos; ao período da existência humana anterior ao uso da escrita para registo (pré-história); o relato de acontecimentos de forma narrativa (e, não raro, interpretada); o estudo das origens de saberes, ciências, modos e tradições; a descrição retrospetiva dos seres vivos e das rochas. Independentemente da forma como o conceito de história é aplicado e, por conseguinte, que objeto será analisado e que métodos serão empregues, nada poderá resultar da análise histórica (se realizada de forma rigorosa e honesta) senão o relato dos acontecimentos passados que efetivamente aconteceram e, se se tiver sorte ou competência, porque aconteceram e a o que propiciaram.
Daí que pensar a história, e sobretudo os seus agentes, não pelo que realizaram (ou fracassaram) no tempo e sociedade que viveram, mas pelo que deveriam ter sido segundo o que cada um, ou cada grupo, julga saber e sentir, pensar estes agentes, desligados do seu tempo, conhecimento, ethos e circunstâncias em que viveram, é, simplesmente, a negação da história e a negação da ciência. É desonesto e atira para tempos obscuros, sempre repudiados, mas omnipresentes nas franjas de todas as sociedades e todos os tempos históricos; como um bicho que apenas se domina parcialmente, e que, por estar dormente em nós, todos nós, esse obscuro em cada ser humano, não se quer, ou simplesmente não se pode, expurgar das sociedades.
Então não se poderá mudar a análise histórica; pergunta-se com pertinência. Pode tanto como quando de substituiu o geocentrismo pelo heliocentrismo. O sol e os planetas não mudaram (que se saiba), mudando somente a forma como eles foram interpretados e os instrumentos empregues na sua análise. Aprendemos nas salas de aulas dos primeiros anos da nossa educação formal que em 711, exércitos muçulmanos invadiram a península ibérica e a tomaram quase toda, impondo o islão. Hoje, a arqueologia desmonta essa história, escrita praticamente desde esse tempo, e afirma, alicerçada em evidências palpáveis, que tal não passou de um mito. Que o islão chegou aos poucos, como resultado dos contactos contínuos entre populações comerciantes descendentes do império romano e povos do magrebe, península arábica e próximo oriente. Olhar os acontecimentos históricos com novos instrumentos, métodos e técnicas é dar um passo seguro no sentido de uma descrição história mais próxima dos acontecimentos passados. Mas, como se sente particularmente em todas as ciências sociais, a análise apaixonada ou interessada do cientista, fere qualquer estudo e compromete as suas conclusões.
Agora o latim
Homines quod volunt credunt, os homens acreditam no que querem, dizia Júlio César; sejam os que escutam, sejam os que se fazem escutar. E é por isso que a história se mostra tão suscetível a dissensão quando é revistada e, sendo caso disso, revista. Seja porque a visão canónica deixa de estar alinhada com o discurso do poder, ou do contra poder, ou porque a visão apócrifa se tornou apelativa e instrumental para um determinado grupo ou grupos, a re-análise de acontecimentos ou tempos históricos é commumente encarada com desconfiança. Especialmente quando esta re-análise é feita à revelia do método científico. Presta-se um mau serviço à história e à humanidade quando se interpretam acontecimentos, desenlaces e vidas passadas com olhos, valores e critérios atuais. É claro que Átila o Huno era sexista, violou (só com a dele) milhares de mulheres e patrocinou a violação pelos seus soldados de centenas de milhar mais. É claro que Churchill era elitista e desprezava todos quantos não fossem homens, brancos, ricos e educados em colégios de elite. É claro que Alexandre era assassino e despótico e matou por se lhe criticar o cavalo. É claro que tribos africanas árabes traficavam os seus irmãos africanos animistas com os portugueses. É claro que o Infante D. Henrique era pouco mais que um mentecapto, tal era a sua obsessão religiosa.
Mas isso que importa? Viverão eles hoje? Quererá alguém, no seu perfeito juízo, toma-los como modelos de vida e conduta face às características atrás expostas? Alguém julgará Nelson Mandela por planear a construção de um exército revolucionário? Átila e Alexandre foram génios militares, mudaram o mundo para as gerações futuras, ligaram pessoas e culturas. Churchill mostrou coragem e determinação irredutíveis perante a maior provação do século XX e foi o rosto inspirador de uma nação. D. Henrique fica como o rosto do primeiro movimento de globalização moderno, onde um pequeno país e pouco mais de uma mão de gente gerou o mundo que temos hoje: crioulo, rico, diverso e virado para as estrelas. É o Legado que essas pessoas nos deixam, porque de pessoas se faz boa parte da história, que faz com que deixem de ser indivíduos e passem a ser figuras, imortalizando-se porque representam muito mais que eles mesmos, a forma como viveram ou como exerciam os seus papeis sociais. Procurar explicar a sua vida e o seu comportamento, fora das circunstâncias e fora dos valores que viveram, é desonesto.
As duas palavras para as estátuas e para as contextualizações dos artefactos culturais ficarão para outra altura.