Subiu o rio em gotas de si
Recobrindo-se de névoa
Tudo em seu redor absorvendo
Qual véu do que dorme
Para lá do que lhe é permitido
Reduzido o mundo à linha
Negra do asfalto da ponte
Que flutua sobre o nevoeiro
Aninhada no nada que tudo
Compreende e tudo esconde
Berço e prisão da viagem
Não mais do que partida
Sem início nem direção
Serpente dentro do sonho
Viva sem antes nem depois
Avanço pela ponte
Não porque durmo
Mas porque sonho
Corto (cego) pelo nevoeiro
Não por ser bravo
Mas por ser sonho
Sonho para lá da ponte
Sonho para lá do tempo
Confinado a um universo
De asfalto linear e negro
Que de sonho se vive. E que vivendo sonhando se aprende o valor desta. De que mais vale a vida para lá do valor dos sonhos de quem a vive?, não importando sobre e como sonha. Sonha a pedestre doutora, disto ou daquilo, ser rica e não ter de trabalhar. Sonha o altaneiro repositor de supermercado, ter carro veloz que o leve depressa às filas de trânsito. Sonha a garota roliça ser modelo e viajar pelo mundo ao ritmo de passos emproados por luzes fortes, embrulhada como um rebuçado resplandecente. Sonha o moço apático ser jogador de futebol e levar multidões ao delírio com o seu domínio da bola e do destino. De que lhes valem estes sonhos, de desejo de conforto, de controlo e de glória? De que lhes vale o sonho, se apenas vivem de si e para si? Vejo-os a todos, doutoras, repositores, garotas e moços e como o que sonham não são sonhos que os confortam, mas mágoas que carregam. Porque tudo com que sonham lhes é, ainda que improvável, possível. Carregam a mágoa do possível, dos sonhos tangíveis à vida de cada um. Qualquer doutora pode ser rica. Qualquer repositor pode ter um carro veloz. Qualquer garota ou moço podem aspirar à adoração. Cuidando que cada sonho é seu, sonham comandados por um general ausente que os mantém reféns do desejo e da possibilidade de sonhar apenas o que lhes será possível. Como se toda a glória das suas vidas fosse o ter mascarado de ser. E eu, que os vejo passar triunfantes e com eles vou sem ir, também sonho, mas sem triunfo nem glória nos meus olhos porque, aos olhos deles, sonho sonhos inúteis que não querem. Sonho os únicos sonhos que restam, os impossíveis. Os sonhos sem glória nem caminho que se tome para lá chegar. Os sonhos inúteis, fátuos; os sonhos dolorosos. Ser uno com os bichos; falar todas as línguas; correr por entre as cearas sem lhes causar dano. Voar ao lado dos comboios e imaginar-me sentado à janela observando o mar. Chorar sem sofrer; sorrir sem alarme; entender as palavras.
Já lá vão a pedestre doutora e o altaneiro repositor, de mãos dadas nos sonhos que partilham. Viraram uma qualquer esquina e já não os vejo no asfalto. Talvez se tenham feito unos com o nevoeiro. Quis ir com eles ficando e vê-los alcançar os seus sonhos ou desesperar por não os ter alcançado. Perdi também, para grande pena minha e descanso da alma, o rasto à garota roliça e ao moço apático. Mantinha a esperança que pudessem ainda sonhar sonhos impossíveis que os elevassem à condição dos que desejam para lá do que lhes é permitido. Mas levou-os também o nevoeiro, deixando-me só na companhia da linha negra que me obriga a ser livre em sonhos. Liberdade que me condena a desprezar os sonhos possíveis, fáceis e inspiradores de um vazio que tudo preenche. Sonhos onde o nevoeiro é de plástico ou existe apenas na mediação de um ecrã; onde o rio jaz como um obstáculo que se cruza e não como um Adamastor que se agiganta para, passando-o, o transcender. Esse rio está confinado às suas margens e diz continuamente à doutora, ao repositor, à garota e ao moço, sem nunca o ser, o que é.
Desprezo invejosamente os quatro. Por terem rumo e propósito. Por virarem esquinas, seguindo em frente, fugindo do que são e quererem ser o que, podendo, nunca serão. Porque se contentam em ser tendo. Por serem auto suficientes e quererem-se uns aos outros. Por terem, ao contrário de mim, um lugar no mundo que constroem entre eles. Por acreditarem num rio que, presente em si, não existe. Resta-me o consolo do desafio por não conseguir pertencer; por sentir o plástico nos dentes e o gás no céu da boca; por ficar surdo com a vacuidade feliz da doutora, pela alegria vertiginosa do repositor, pelo reflexo convexo da garota e pela ilusão onde se deita, acordado, o moço.
Perdido o rumo, perdida a vontade, perde-se também o tempo, para de novo surgir, escondido, mas persistente, no nevoeiro que dá mostras de quebrar ao peso do possível. A liberdade que aprisiona ao impossível quebra, sem se dar conta que alastra e se infiltra de forma impercetível, como uma banana que ainda ontem estava verde e hoje mostra já as nódoas que a vida lhe deu. —Deveria tê-la comido ao almoço, depois de estar verde e antes de estar podre—. Sobressai a realidade dos outros, emergindo do nevoeiro, ou dele se revelando e nesses pontos frágeis, corroídos, por onde se insinua a realidade, surge um reflexo, tão familiar como detestado.
Porque todo ele é desalento e sucesso.
Desalento por ser um apátrida do tempo reduzido ao grito no vácuo de uma luz que trespassa sem refletir um único mosquito que se vê refletido/perdido no universo e percebe que pertence ao infinito fatal de nascer e morrer continuamente uma única vez sem a morte por fatalidade enquanto medida de sucesso que de tão obscuro se torna candente.
Sucesso por ser em si todas as coisas do nada que é tudo em ondas alternadas de mito e ciência que se embalam contrapondo-se alimentadas pela força contínua de uma existência sem qualquer sentido.
No fim, desejo. De ser e de permanecer. De se incrustar, sem marca e indelével, na perenidade da história. De saber que, ainda que sem sentido, a brevidade da vida será sempre um infinito contido noutro e, apenas assim, apenas para o infinito de/em cada um, terá significado.