Textos

O arquivista de impossíveis

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Cairós tinha no gesto e no olhar uma calma que resultava não apenas de si, nem do que aparentava aos outros, mas antes de uma simbiose única entre si e o universo. Tudo nele se conjugava na proporção e no tempo precisos, porquanto agia como se todos os seus gestos, palavras, atitudes e comportamentos fossem o gesto, a palavra, a atitude e o comportamento apropriado, adequado, consonante, propício. Era em tudo uma extensão única do universo e trazia-lhe uma consciência e uma atitude próprias que transpareciam em tudo o que fazia.

Tinha a mais curiosa dos ocupações. Uma atividade tão única, como indispensável. Uma atividade definidora e intrínseca à memória da humanidade. Geria o Grande Arquivo dos objetos impossíveis. O local onde todas as criações impossíveis de existir para lá da mente do seu criador ou da sua utilidade, ganhavam forma e lugar. Quando alguém imaginava algo impossível, fosse um objeto, uma ideia, uma teologia ou mesmo uma filosofia impossível, Cairós era o responsável para que, dentro do arquivo, esse objeto, ideia, teologia ou filosofia, ficasse registado, sob forma física e funcional, para memória futura dos impossíveis a que as humanidades se elevaram. Como uma ode triunfal à magnificência, poder, mas também à estupidez, das produções humanas.

Nos infinitos gabinetes, cada um dedicado a uma civilização, ligados por um único corredor imaginário, linearmente circular e onde todas as portas se encontram escancaradas, sinal de que apenas um ocupante ruma aqueles espaços e raras as visitas, as paredes apenas se adivinham atrás das estantes envidraçadas de ébano, com incrustações de madrepérola e com puxadores e pés de marfim, extraído dos ossos vivos de incontáveis animais extintos. São tão altas que se perdem nas nuvens que lhes servem de abóboda, e ainda assim, todo o seu interior é alcançável pelo olhar e todas as etiquetas que identificam os conteúdos são legíveis, não importa qual a posição, dimensão física e fortitude intelectual do visitante. Dentro de cada estante, em cada prateleira, ajustável em altura e profundidade em função do objeto que alberga, estão caixas. Nestas, início de qualquer tenção, há-de arquivar-se o objeto impossível. 

Vê-mo-lo a ultimar, polindo, uma dessas caixas. Paralelepipédica, de uma liga tal, que susterá o objeto a conter em suspensão, fixando-o apenas pela força da sujeição magnética. A caixa, já de si extraordinária, guarda um igualmente extraordinário objeto do cotidiano impossível. Um elegante talher de neodymium revestido a ouro, simultaneamente um garfo e uma faca.  Numa extremidade, rematando numa concha ligeira, despontam três dentes suficientemente afiados para picar uma panóplia de alimentos. Na outra, uma faca de ponta arredondada e serrilhada a dois terços do seu comprimento. A ligá-los, um único cabo. Idealizado por alguém que gostaria de saborear rosbife numa qualquer cocktail party, acompanhado de chardonnay bem fresco, Cairós concebeu um protótipo funcional de algo que apenas em sonhos ou conversas supérfluas de cocktail parties encontra o seu lugar. Vê-lo na caixa, flutuando sem tocar o veludo azul profundo que a forra, parece muito mais do que algo inconcebível. Tem sentido e propósito e dá vontade de nele pegar e usar como se de um talher comum, ainda que de ouro, se tratasse. 

Antevendo o desejo, apresta-se Cairós a aplaca-lo, sustendo atempadamente, com um gesto suave, a mão do maravilhado visitante que por ele se encantar. Tocar-lhe seria trazê-lo para a nossa esfera de existência e, dessa forma, aniquilar-lhe o propósito. Discorre estas e outras considerações, sempre pedagogo e cortês, enquanto dirige o corpo e o olhar do visitante para um outro objeto, ainda em construção. Está no centro do gabinete, coberto por uma galáxia, numa mesa de trabalho algo desarrumada e parcialmente atulhada de materiais e ferramentas inconcebíveis. Cairós não se detém em explicações e levanta a galáxia que rebrilha sobre o negro do tecido que a sustém em permanente movimento exibindo o seu último labor. Se estiver extremamente atento, o visitante poderá observar, na ponta de um dos braços da galáxia que gira lentamente a mais de oitocentos mil quilómetros/hora, uma ténue estrela amarela e por perto, um minúsculo fotão azul. Deslumbra-se o visitante perante o que vê e pergunta, sem abrir a boca, o que é e o que faz. Cairós é paciente para a ignorância do visitante e avisa-o para o paradoxo que poderá constituir a resposta.

À insistência do visitante, explica Cairós que se trata de um objeto que permite lembrar o futuro. O seu portador passaria a recordar os eventos que estão por acontecer de forma tão natural como as memórias, que até aí, guarda do passado. Antevendo o apetite do visitante e perspetivando-lhe infames utilidades, Cairós alerta para um pernicioso efeito secundário. Ao utilizar este objeto impossível, o agente deixará de recordar todo o passado, sendo a sua história aquela que se encontra por escrever e que perderá todos os pontos de referência com os demais. O visitante recorda, absolutamente só, apenas a história do futuro. Ao ver que tinha forma de mulher, quis o visitante saber o nome do prodigioso construto. Cassandra, disse Cairós, lacónico. 

(Texto em revisão permanente)

Sobre nevoeiro e sonho;<br>Desalento e sucesso