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Muito pouco de nós ainda têm os confortos modernos como os de meados do séc. XXI, confortos esses, exponenciados hoje em dia, para lá do que qualquer processo criativo ou imaginativo que qualquer pessoa de então poderia antecipar. Apesar do progresso tecnológico registado, um desejo revivalista impele-nos a usar os aparelhos pessoais do início desse século para ouvir a música desse e de outros tempos, com eles captar imagens cruas e indefinidas e distorcer a realidade captada com patines coloridas e deformadas. Apesar de não haver forma de os conectar ou com eles comunicar, usufruímos da música lá instalada e fruímos passando as imagens lá gravadas, carregando-os e estimando-os religiosamente. Carregámo-los, aos aparelhos, e a tantas outras coisas, desde floreiras a veículos, porque, enquanto humanidade (mas não para toda a humanidade), há muito resolvemos o problema da energia. O que ainda há cerca de 80 anos se denominava, por não saberem sequer o que seria, de tecnologia messiânica, está hoje facilmente acessível a qualquer cidadão registado, provendo, dentro de uma caixa que cabe num bolso, uma quantidade infindável de energia. Estima-se que cada uma dessas caixas alimentaria uma cidade de 300 mil habitantes de finais do séc. XX. Segundo os registos mais credíveis, não temos forma absoluta de o saber, foram produzidas mais de quatro mil milhões destas caixas, quase todas de primeira geração, com custos ambientais e humanos significativos. Numa época onde já não se falava em evitar as alterações climáticas, mas antes, como nos protegermos delas, os “Sóis de Bolso”, assim os chamava-mos na altura, apresentavam-se como o fim da dependência dos hidrocarbonetos, do solar, do nuclear… do tudo. Era a libertação do homem dos últimos constrangimentos biológicos. Energia sem fim, CRISP II, incorporação tecnológica no genoma e bioPrint: Finalmente deuses! No entanto, e como habitual na história da humanidade, o custo de as produzir suplantou em muito a capacidade do planeta humano que criamos e do natural que então resistia. As primeiras unidades, mais de 98 por cento de todas as que foram produzidas, tinham problemas de concepção e explodiam se determinados fatores se conjugassem. A primeira rebentou em Nairóbi, então cidade capital da antiga nação do Quénia, e matou cinco milhões e meio de pessoas. Uma segunda rebentou numa das Ilhas das Filipinas, matando 15 milhões de pessoas; despertou o vulcão Anak Krakatoa no arquipélago da Indonésia, matando mais cinco milhões. O consórcio que detinha a patente e produção dos Sóis, afirmou que as unidades não tinham problemas e que as explosões ficaram a dever-se a redes elétricas deficientes. Só quando, quase em simultâneo rebentaram duas mais, uma no Vermont dos americanos (que pela densidade de equipamentos, fez rebentar outras sete e destruir toda a costa leste do continente dos americanos) e uma segunda numa cidade da Cidade/Região da Prússia, é que se tomaram medidas para parar a sua produção e venda. Dessas explosões, na Terra dos Americanos e na União das Cidades/Região Europeias, resultaram perto de mil milhões de mortos e vastas regiões onde grandes esforços de recuperação ambiental haviam sido feitos estavam agora devastadas. Só então as unidades de primeira geração, isto é, quase todas, foram retiradas de circulação e, dado serem consideradas demasiado instáveis sequer para reciclar, foram despachadas em direção ao sol para destruição defnitiva. O impacto das unidades com o sol causou uma erupção solar de proporções catastróficas, eliminando praticamente todos os sistemas elétricos e electrónicos mundiais. Apenas as Cidade/Região mais ricas, que já não dependiam da produção centralizada de energia, puderam reerguer-se, acentuando mais o fosso entre regiões e, por conseguinte, entre protegidos e desamparados.

A pegada humana no planeta, desde a revolução industrial, até às catástrofes com os sóis de bolso, foi por norma abordada na medida do dano causado pela humanidade ao planeta. Nem mesmo o registo fóssil de sucessivas extinções massivas nos fez perceber a dimensão do nosso erro. Os acontecimentos e ações humanas, desde que baixamos o olhar dos céus maculados de estrelas, até ao desfecho da crise dos Sóis defeituosos, resultaram na extinção de nove décimos da humanidade. Somos agora pouco mais de 800 milhões. Dos nove mil milhões que chegamos a ser, a maioria desapareceu devido ao confinamento geográfico das regiões do médio oriente, África Unida, e Mercosul Alargado. Morreram de fome, nas guerras olímpicas entre blocos e de sucessivos e incontáveis desastres ambientais, sobretudo secas, fogos e furacões; tudo isto em menos de 60 anos. Aparte disso, e após o que chamou de A Grande Ceifa, o planeta não poderia estar melhor. Das áreas onde a população humana se extinguiu ou foi forçada a retirar, a vida selvagem regressou em números e diversidade consideráveis. E tão melhor e de forma mais frondosa o fazia, quanto mais a deixávamos abandonada. Como temos energia para qualquer coisa, produzir objetos e alimentos passou a ser algo bastante simples. Apenas os desamparados, os não registados ou os 0.01% constroem coisas ou comem plantas e animais; uns por sobrevivência, os outros porque podem ou assim optam. Nós, os que vivemos fora das terras ermas ou das zonas de confinamento, imprimimos o que necessitamos, bastando para tal obter uma autorização do município. Comemos alimentos sintéticos, sintetizados e integrados, para produzir sensação de saciedade, numa base feita de algas azuis que bondam nos mares. Dessa forma, deixamos de ter de produzir alimentos em terra e de os capturar nos mares e rios. Plantaram-se triliões de árvores de espécies há muito esquecidas e mais uma única espécie de feto que se destaca das demais plantas por realizar grandes capturas de carbono em relação à sua massa. Os mares, primeiramente deixados ao seu remédio, não conseguiram devorar o plástico e estagnavam. Intervimos modificando um diminuto crustáceo que, aos quatriliões, prospera porque de plástico e de outros hidrocarbonetos se alimenta e os transforma em resíduos orgânicos. Despejamos óxido de ferro em zonas de afloramento nos mares mais frios, com resultados espetaculares. Agora, estima-se que a biomassa marinha pelágica tenha quase triplicado face a valores de 1960. Já os mares profundos continuam insondáveis. O aquecimento global fez subir o nível global dos oceanos e, entre tantas mudanças abruptas, obrigou os corais a deslocarem-se para outras latitudes. Hoje, o que resta do mar mediterrâneo, detém a maior extensão de recife e o maior número de espécies de coral de águas superficiais do planeta. Percebemos tardiamente que não era o planeta que precisava de ser salvo, mas apenas o nosso lugar nele que estava ameaçado.

Praticamente toda a África e todo o sul do continente dos americanos são desertos humanos. Noventa e cinco por cento da população morreu pelo confinamento geográfico decretado em 2040 e nas subsequentes disputas pelos parcos recursos existentes. Foram tempos negros, em que a humanidade se viu obrigada a voltar as costas a si própria para (dizem os defensores do confinamento) se salvar. Contrariamente, os detratores do confinamento afirmavam que tal ação para a extinguiu definitivamente. Resultado das políticas de Mobilidade Zero (MZ), poucos foram os que conseguiram tomar refúgio na União das Regiões da Europa, na Federação Russa ou nas terras dos Filhos do Chin, onde as estruturas económico-governativas permaneceram mais ou menos estáveis. O país dos americanos do norte transformou-se política e geograficamente numa ilha e, em absoluto isolamento, declararam-se uma nova espécie humana. O Homo sapiens americanus, diferente e superior, isentou-se das responsabilidades para com o destino e sofrimento dos outros sapiens (classificados a partir desse momento como fauna selvagem), assentando nessa diferenciação essencial, a sustentação filosófica, jurídica e moral para o rumo traçado pelos seus líderes. Discriminação e apuramento genéticos, deportações massivas, extermínio dos “não sapiens americanus” e a implementação de um sistema socioeconómico oficialmente designado como Representação Condicionada, mas que entre nós ficou conhecido como neofeudalismo, colocaram o país dos americanos do norte em guerra latente com o resto do mundo. Guerra essa, liderada pelos filhos do Chin, única região capaz de deter as suas persistentes pulsões belicosas.

Em África, existem ainda e de forma precária, bolsas residuais de população autóctone. Os ancestrais seguidores de Mafamede e do Livro das Flores, estão concentrados na nova costa sul do Mediterrâneo. Levam uma existência plácida, vivendo da lucrativa indústria de armazenar e vender energia, pois devido aos céus encobertos das regiões temperadas, apenas naqueles desertos se conseguem captações de energia solar capazes de dar resposta ao consumo energético das cidades/região. Os sóis de bolso estáveis são escassos e dependemos dos acumuladores de alto rendimento para impulsionar o nosso modo de vida. Enquanto que na ponta austral, povos oriundos das ilhas nação submersas do pacífico e de outras regiões costeiras, um pouco por todo o mundo, reclamaram a terra desabitada e constituíram lá uma nova cidade/região. Aí, porém, a vida é difícil e arriscada e a subsistência das populações nem sempre está assegurada. Na grande ilha do sul do continente dos americanos, não há população humana registada desde as Repúblicas Boliverianas à Patagónia. 

As assimetrias agudizaram-se. A qualidade de vida das populações não registadas que vivem fora dos blocos americano e euro asiático, esta no limite da subsistência. São os desamparados, os eremitas, os criminosos, e outros afins e contar-se-ão em torno de dois mil milhões. Vivem com acesso limitado a tecnologia, têm apenas entretenimento local e não têm perfil de consumo. Os eremitas são residuais e vivem nos desertos humanos. Não têm acesso a nenhum dos benefícios da civilização mas, na sua maioria, são auto excluídos. De entre os mil milhões de registados, novecentos milhões serão de deserdados, aqueles que vivem enquadrados na sociedade, mas que pouco dela usufruem, aparte de acesso a tecnologia e entretenimento mas com restrições fortíssimas no seu perfil de consumo. De entre os registados, há os como eu, cidadã com perfil de consumo irrestrito. Seremos cem mil, distribuídos entre os blocos, sendo que cerca de metade serão filhos do Chin. Temos usufruto total do que a civilização tem para nos dar. O trabalho é uma memória distante de dias que, esperamos, não voltem. A vida fora das cidades/região é quase sempre precária, de subsistência ou, em poucos casos, eremítica por opção.

As assimetrias agudizaram-se. A qualidade de vida das populações não registadas, genericamente as que vivem fora dos blocos americano e euro asiático, é muito baixa e está no limite da subsistência. São compostos por três grandes grupos: desamparados, os ermitas, os criminosos. Vivem com acesso limitado a tecnologia, têm apenas entretenimento local e não têm perfil de consumo. Os ermitas são residuais e vivem nos desertos humanos. Não têm acesso a nenhum dos benefícios da civilização mas, na sua maioria, optaram por este estilo de vida desprovido e, na sua ótica, absolutamente livre. De entre os registados, nove em casa dez são deserdados. Ou seja, vivem enquadrados na sociedade, mas pouco ou nada dela usufruem, aparte de acesso a alguma tecnologia e entretenimento mas com restrições fortíssimas quanto ao seu perfil de consumo. De entre os registados, há os como eu, cidadã com perfil de consumo irrestrito. Seremos menos de cem mil, distribuídos entre as cidades/região, sendo que metade são filhos do Chin. Temos usufruto total do que a civilização, no seu pináculo, tem para nos dar. O trabalho é uma memória distante de dias que não voltam.

A vida fora das cidades/região (e dentro desta quando não se é cidadão registado), é quase sempre precária, de subsistência ou, em poucos casos, eremítica. Dentro das cidades/região da Europa Unida, da Federação Russa e da terra dos Filhos do Chin existem, como referi, dois tipos de cidadãos que passo a descrever melhor: a esmagadora maioria, designados por Morlocks, assegura as poucas funções que o automatismo e a inteligência artificial ainda não conseguem resolver, como servir a mesas, limpar casas e atender nos postos de consumo. Nós, os Elóis, vivemos para engrandecimento da espécie humana. Há muito que expurgamos o ódio e a ganância da nossa sociedade. Levamos existências contemplativas uns, de desafio intelectual ou físico outros. Esta dualidade social, aparentemente benéfica apenas para poucos em detrimento de muitos, efetiva-se tal qual como parece. Com efeito, e ao contrário do imaginado pelo quase esquecido escritor do século XIX, Wells, os Morlocks pouco mais mais obtêm pelo seu contributo do que o direito ao reconhecimento da sua existência enquanto elementos úteis aos Elóis e ao seu conceito de humanidade. Qualquer tentativa de exorbitar funções e/ou usufrutos é resolvida com a quitação do contrato vital individual de números indeterminados, mas sempre avultados, de Morlocks. Perante o abismo do século XXI, a humanidade respondeu como sempre, em respeito à sua natureza ancestral e perante circunstâncias extremas, reagiu da mesma forma que um bando de rhesus defende uma charca.

Sou Fátima Sung e neste momento prepara-se a digitalização da humanidade registada, o abandono do planeta Terra numa viagem de 50 anos até Proxima Centauri e o extermínio de toda a população biológica. Corro um grande risco ao deixar esta mensagem. Eu e outros, infelizmente poucos, rejeitamos a nova ordem mundial e a passagem da vida assente no carbono para a assente no silício e no quanta. A luta fora do sistema está eventualmente condenada ao fracasso pela quitação do contrato vital individual. A luta por dentro do sistema é ofuscada pelo brilho do propósito de elevação Humano e pela dinâmica de consumo. Vamos tentar um terceira via: abandonar a tecnologia e o consumo, contactar os eremitas e, com eles, propagar a nossa mensagem e desaparecer dos mapas deles, cavando fundo terra adentro.

Se respiras ao leres as palavras desta mensagem, significa que como ser vivo, o meu tempo chegou ao fim, mas não o ideal que carreguei comigo; se respiras, ainda estás a tempo.

FS

Acabou!
Coração