Porque a luz em Caravaggio é pandémica
A imensidão negra é inundada de luz no mais íntimo do que somos. Como se apenas a noite que amanhece na persistência das sombras, deixa para trás languidamente e se evapora na luz do dia que irrompe em onda mansa, nos deixasse cegos a mais um dia entre muralhas. Muralhas compostas de paredes e móveis, imóveis na forma e no sentido de por aqui se manterem encostados às paredes e pousados pelo chão que amparam e recortam; quadros e televisores pendurados nas paredes, como ameias negativas, formam rasgos para o mundo em buliçoso êxtase que não existe fora de ti. Já nem as janelas nos valem! tudo dum chiaro scuro frenético e é paisagem, bucolismos urbanos de prédios imóveis e carros estacionados; apenas velhos desafiam o bom senso, como búfalos velhos que, talvez cansados de viver, se demoram junto ao rio, bebendo, indiferentes aos leões minúsculos que os rodeiam. E os móveis espalhados pelas divisões definem percursos no espaço que deixam livre, adarves que percorremos em múltiplas configurações de sentimentos, desde o absorto, fundidos com os Jurassic 5 ou o Edd Mota que bomba ou embala, respetivamente, nos headphones, ao exasperado e doloroso momento de solidão que grita pelo outro, qualquer outro que nos abrace e nos beije na face, ao cândido passear de um livro ou ao maquinal dispor da mesa para o almoço que tarda.
São sete horas. A noite é uma saudade repetida e um alívio do corpo estafado de estar quieto. A rotina matutina, por pouco ou em nada ter mudado, defere a presença do confinamento; levantar, mijar, lavar; ok. Vestir, abrir, sair… Já não saímos. É então que nos damos conta: o mundo vive uma espécie de prisão domiciliária.
Vemos ao longe pássaros que entoam cantos de liberdade que ora nos soam a escape, ora a desafio despudorado de bicho que, na sua natureza, retoma a supremacia da sua condição e, numa escolha inconsciente, ora nos ignora, ora nos atormenta com imagens do seu canto vibrante, projetadas nas janelas para dentro das casas. Como se os pássaros que tão indiferentemente enxotamos das nossas vidas, espaços de consumo e certezas absolutas, retendo deles apenas representações vazias das suas existências, na forma de espécimes engaiolados, documentários televisivos e férias campestres, fossem agora, que se invertem os papeis, senhores dos espaços que tínhamos por nossos. E que as suas vidas, expressas agora nos seus termos, longe das representações vazias de contexto e de conteúdo, estilizadas e turísticas que construímos deles, nos sejam agora estranhas e acintosas no que ferem o edifício das realidades fictícias em que julgávamos assentar o nosso modo de vida.
Ouvimos as nuvens num arrasto débil, sem força para fugir ou largar chuva, por céus cada vez mais azuis, cada vez mais escuros, e pensamos:
– Já cheguei até aqui; poderei ir mais além?
Teremos forças para sermos mais um dia, saudoso do que nunca fizemos, desejosos de voltar ao que gostaríamos de ter sido? O mais penoso de estarmos aqui é que cada dia que acaba para logo se ver perdido, lega, em acumulado desespero, as resoluções falhadas para o dia seguinte. É como se as resoluções de ano novo fracassassem a cada dia que passa. E isso rói aos poucos a alma dos que de nós caem na armadilha de as formular. Os livros que vou ler e não começo; o pão que vou fazer e não faço; o exercício ou a limpeza permanentemente adiados para o dia seguinte. Porque vai haver um dia seguinte. Mais um dia em que o confinamento só começa depois do levantar, mijar, lavar; ok.
Cheiramos o odor a estar cá dentro, um cheiro a ficar parado, sem brisa que nos arrepie, nem distância que faça o som brilhar. Há os sons da casa que nos dão conforto e bem-estar, mas esses são adormecidos pelas paredes; são atirados contra elas por uma voz que desperta ou uma gaveta que bate e delas escorrem, mornas e aborrecidas, como se tocasse uma banda com tambores frouxos e flácidas cordas de guitarra. O som amplo da rua, como um amarelo forte que nos faz pensar em savanas transversais e rios longitudinais é, agora e cada vez mais, uma memória que se esvazia das nossas mentes e se mistura em fábulas de azul forte e cheiro a livro novo que quase esquecemos havermos lido. Há depois a memória do carro, não aquele que se sente preso, no semáforo ou no rebanho; antes o que se sente vivo debaixo do nosso pé direito na estrada curvilínea, desafiador na pose, no ruído do motor, no ar que te acaricia a face pela janela aberta. Temos pena de chegar ao destino, ainda que as costas reclamem retidão de forma e caráter; ainda que os do lado e atrás nos digam que vamos depressa. Não vamos depressa, nem devagar; vamos no tempo certo. Num tempo em que os bichos matam mas não notamos; um tempo solto, onde as preocupações eram, vemos agora, no mínimo frívolas; um tempo que nos conduziu a este tempo e ao qual queremos, de forma incompreensiva, regressar.
As horas passam; a luz some das ruas. Recolhe às casas, aos apartamentos, em bolbos incandescentes numa alva fria, tão fria como a memória do sol que se pôs com a promessa de amanhã regressar igual. Também nós regressaremos iguais, num amanhã igual. Teremos de ser todos heróis para sobrevivermos aos dias iguais.