Avança a manhã, fazendo subir o sol, para lá das nuvens laboriosas e dispersas, em direção ao imenso azul, enchendo a face de uma luz quente que atenua o vento norte que ainda sopra em setembro. A outra face, temperada, ouve o mar com a atenção de quem se perde a cada ave que passa rasante ao prazer indolente de estar. As vozes são indistintas e as suas conversas, vazias e descartáveis. Leva-as o vento, como a todas as boas palavras. Á medida que o sol impõe a sua tirania neste pedaço de mundo, apenas ele e o mar persistem, como numa foto tirada em película de baixa sensibilidade, onde tudo que é transitório, vozes, aves, nuvens, não deixam impressão, mas tão só memória caldeada e incerta.
Depois, num tempo imensurável, uma qualquer ave, voz ou nuvem, trazem algo diverso que se interpõe ao estar do sol e do mar. Uma mácula que imprime a alma, e deixa apreensão. É a consciência de estar ali, entre sol e mar, e não entre paredes, como compete ao competente. Nuvens, lá do alto, laboriosas e preconceituosas, olham para baixo em desdém, e escondem o sol e escurecem o mar. Conversas inaudíveis enchem a mente que se arrepia de si mesma, aves piam e ameaçam em voos picados como alfinetadas, e o sonho esmorece. Por momentos, o que permanece desaparece e apenas o transitório, o que não deixa marca, parece importar. Nesse limbo culposo de estar só por estar, só porque sim, decide-se o destino da manhã, da disposição, do sentido da vida. Ribombam em crítica as nuvens lá do alto. Agigantam-se as vozes em vagalhões demolidores do ser. Picam as aves com os seus bicos pequeninos.
Mas sobra força. Porque há tempo para voltar a ouvir o sol e sentir o mar. Tem de haver. Ainda há tempo (por quanto tempo?) para ser livre dentro de si mesmo e para criar mundos que as nuvens, por mais alto que voem, nunca alcançarão por si só. Mundos fabulosos, sem propósito que não o de mostrar às nuvens o quão inútil é a sua vida sem eles. De como não importa quão negras e ominosas, ou brancas e esperançosas são, que terminam invariavelmente em chuva. Mundos irreais, surreais, meta-reais. Mundos simples, desconexos, belos e pungentes. Mundos fáticos e críticos.
E parte novamente o pensamento, sempre entre sol e mar, para as paisagens de sonho. Para as aldeias do Mota, as mulheres do Brandão, os animais do Ribeiro, as serras da Luís e do Torga. Tudo inventado, inútil, distópico e fabuloso. Tudo belo. Imagético. Poético. E fica por lá, pelas bandas indolentes, desprendidas das gentes, do tempo e do espaço que medeia sol e mar. Desprendidas do início e do fim. Num tempo que não passa nem corre. Escorre, flui. Ora dormindo, ora contemplando, ora pensando, ora sendo. E no fim, quando o mundo que é sempre o mundo insiste em chamar, quando o corpo, entorpecido, geme baixinho acordando o ser livre que ninguém vê (ou quer ver), volta-se às nuvens. Pois delas é o mundo.