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Xico comprou um carro novo. Fiat 550 Gianini. Comprou-o usado num desses stands de automóveis a céu aberto, daqueles: PROCURO NOVO DONO. Quem o vendeu, afiançou-lhe que a dona era uma professora de português, solteirona, que uma vez reformada, deixara de dar uso ao carro. – “Aquilo era de casa para o trabalho, do trabalho para casa. Fazia uns 2000 kms por ano; nada mais!” Orgulhoso da sorte que teve, dada a raridade da situação apresentada, tratou da papelada, hipotecou-se e lá levou o carro para casa, melhor dizendo, para a porta de casa. Estava um mimo. Cheirava àqueles pinheirinhos verdes que se penduram na manete do pisca-pisca ou então do retrovisor para se obter o duplo efeito de melhor dispersão do aroma e enfeite natalício. De facto, entrar no Fiat era uma experiência sensorial única; tirando um ardor no fundo da garganta e um lagrimejar compulsivo, os asmáticos e outros alérgicos deveriam munir-se da respectiva bombinha, aquele carro cheirava mesmo bem. Os estofos estavam bem conservados, e o facto de o rabo e costas se enfiarem nos assentos, apenas contribuíam para aumentar a sensação de conforto e acolhimento. No tablier, sobre o lado direito, um bonito e decorativo autocolante a dizer Valvoline, acrescentava um toque de competição e irreverência muito caros a Xico.

Também o exterior estava elegantemente decorado com autocolantes. STPS, Konys e claro, Valvolines, pontuavam a carroceria e, se bem que assimétricos na disposição, arvoravam o pequeno Fiat a graças de carro de rally. E o motor? Um encanto, só lhe faltava o pêlo para parecer um gato. Se a Manhã não fosse muito fria, digamos inferior a 16º, o carro pegava logo à segunda ou terceira volta do dimarré. Duas voltinhas e era ouvi-lo: vrummm, vrummm, popitipó, popitipó. Uma assapadela no acelerador, senão podia afogar-se, embraiagem a fundo, engrena segunda para engrenar a primeira senão arranha, e lá vai ele; primeiro ao saltinhos, a conter a potência, depois lançado, aí a uns 40 ou 50 à hora (na cidade não se pode dar mais), era difícil dizer ao certo dado o oscilar do ponteiro do velocímetro. O arranhar da primeira ainda o deixou uma noite sem dormir. Tinha estado a polir o carro pela terceira vez, cansou-se, e mesmo assim não dormiu. Na manhã seguinte telefonou ao vendedor e confidenciou-lhe a sua preocupação. Não havia problema, estava contente, mas o arranhar da primeira fazia-o pensar. – “Ora meu amigo, esqueci-me de lhe dizer. A professora tinha a mania de engrenar segunda antes de engrenar a primeira, coisas de mulher, e o carro ficou com o tique.” Então era isso, a caixa estava em óptimas condições, tratava-se apenas de um mal entendido. De ora avante engrenaria a primeira à primeira, esperando com isso que o Fiat se desabituasse deste e doutros maus hábitos incutidos pela antiga dona.

No trânsito, alguns invejosos atiravam-lhe impropérios. Visavam mais ao carro que ele; – “Tira a lata daí, ó taralhoco!”. Invejosos é o que são. Todos eles: invejosos.

Sentença da semana 51.
Os meus filhos só se portam mal quando estou mal disposto