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Perante a inevitabilidade da decisão tomada, aproximou-se da enorme lareira aberta. Atirou de um lanço metade do Brandy que tinha no copo para o fogo logo o consumir numa chama azul, sem rasto nem história. Olhava o fogo sem chama no olhar, mantinha o braço direito esticado na direção do fogo, palma aberta, voltada para baixo, sem experimentar o calor. Vivera seco toda a sua vida, seco de vontade, seco de afeto, seco de propósito. Cuidava no fogo um amigo que o secaria ao extremo, sancionando a sua decisão. Aproximou-se um pouco mais, resistindo ao fogo que o aquecia cada vez menos e, fixando o olhar no moirão de ferro ornado com duas cabeças de cão, percebeu que estas se moviam para o fixar. Será artimanha do ar quente? Será partida do Brandy ou a sua mente cansada que o fazem ver coisas que não existem? Ainda assim, os cães fitavam-no. Fixamente. Sem os rodeios de olhares cruzados por acaso. E dos seus olhos mortos escorria uma luz amarela; e das suas bocas assanhadas palpava um gosto amargo a estragado; e das suas narinas abertas exaltava um vulcão que despertava em fúrias sinfónicas. Frio e ansioso, não ousou fugir, sequer evitar o olhar. O horror tomava-lhe o pulso, a repulsa as pernas, o nojo o estômago. O fogo dilatava, o lar aprofundava, perdendo-se na distância negra da fuligem. O moirão é agora um trono ardente, ladeado pelos cães, já completos. Tinham as pernas longas e os lombos arqueados, pelo hirsuto e sujo de fagulhas e de sangue cozido. Por entre os dentes brotavam labaredas, pelas narinas, fumo denso que empesta o ar. Aos pés do trono, sob a supervisão dos cães, um poço se abre e se precipita sem fim. Um bafio que conhece revolta-lhe o estômago. Leva a mão à boca para segurar o engulho. Tenta respirar fundo mas não consegue. Tenta recuar para o cadeirão mais afastado, na esperança de estar a alucinar, mas está preso. Alertados pela tentativa, os cães desviam o olhar do poço e fixam-no em si. Um mostra mais os dentes, o outro rosna; ele gela. O poço abre mais, adensa, afunda. O seu rebordo está já no limite dos seus pés, dando-lhe a ideia que pisa um patíbulo sobre o infinito. O chão fumega, ruge, treme. Ousa olhar o fundo, esperando a aproximação do seu algoz. Das paredes nuas, dor e sofrimento brotam, na forma de corpos tocados e rebocados pelo fogo. Belos nas suas formas, frios nas suas expressões, fúteis no seu propósito.

Da mesma forma que tudo começou, tudo agora parece parar. Param os cães, para o poço de aumentar e de rugir, param os corpos agonizantes de se contorcer. Dir-se-ia o olho da tempestade, o espaço tempo da paz impossível de desfrutar, o remanso no advento da destruição. Fechado em si, estanque ao mundo, à própria existência, estanque à dor que inconscientemente antecipava, manifestou-se calmo e desconcertado, explodiu em silenciosa confusão de medo e aceitação. Os cães arquejavam os lombos e metiam os rabos entre as pernas; os corpos no poço voltavam a face e cobriam os olhos com as mãos ou com os antebraços. O moirão trono estava agora a ponto da incandescência. Largou finalmente o copo. Rasgou a camisa, jogando-a para o lado. Avançou para a lareira flutuando por sobre o poço. Afaga de passagem a cabeça de um dos cães que estremece, encolhe e lambe-lhe a mão. Voltou-se, sentou-se no trono, o manto cobriu-lhe os ombros nus. O calor branqueou-lhe a pele, dando-lhe um ar angelical. A sua face era agora a de um serafim. Uma voz cavernosa e medonha ressoava nas profundezas; “O jantar está pronto!”. Estava em casa.

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