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Tirou a chave do bolso do casaco mas logo se arrependeu e tocou à porta. Abriu-a o filho mais novo, o Gabriel. Disse-lhe, Olá Papá!, como nunca o tinha dito, ou pelo menos, ouviu-o, ele, de uma forma como nunca o tinha ouvido, e a sua garganta fechou. Nunca o menino mostrara tanta alegria em ver o pai. E só tinham passado três dias. Pegou nele ao colo, apertou-o, beijou-o na testa, na face, no pescocito e, recomposto o aparelho vocal, perguntou-lhe se estava tudo bem. A resposta foi já dentro do registo diário: Tá!

Depois veio à porta o mais velho, o Abel. Demorou um pouco a aparecer, desconfiado, como um gato que foi expulso da cozinha e agora retorna a medo. Disse, Olá Pai., baixinho, e chegou-se a ele, conduzido pelo braço do pai, que o puxava de encontro ao flanco. Com os filhos assim apertadinhos, sentiu-se confortável e não trocaria esse conforto por nada, a não ser, talvez, o pequeno esforço de se baixar para beijar demoradamente a testa do filho mais velho.

Ela assomou à porta, cumprindo mais a função de bengaleiro que a de mãe. Disse, Vieste cedo. Ainda bem, eles não paravam de perguntar por ti!, Entregou-lhe o casaco do petiz, vestiu o mais velhito, deu-lhe um beijo, e, ao aproximar-se do mais novo, ao colo do pai, pôde sentir a proximidade dele e as suas mentes voaram. Ainda trocaram um olhar como os de antes, ela ainda fechou os olhos lentamente e ele ainda quis passar-lhe a mão pelo pescoço e os dedos pelo cabelo, mas a inocência do Gabriel intrometeu-se e interrompeu a reconciliação. Pensou, Ainda bem., qual deles o pensou, não sei. Talvez ela cansada de o ver entregue ao nada, talvez ele, desiludido por ela não o ter ajudado quando mais precisou.

Feitas as despedidas, as recomendações e assegurados os cuidados, meteu os miúdos no elevador e viu a porta de casa fechar lenta e indecisamente. Descendo, olhando a sucessão de números e vidros reforçados, a alternância entre aço e cimento, deu-se conta que aquela já não era a sua casa. Perdeu-se naquele instante, sem casa, quis subir, dizer que reencontrara o rumo, que a amava como dantes. Mas não, continuava sem rumo, à deriva, e já não tinha a certeza se alguma vez a amou. O elevador parou, abriu a porta, amparou os filhos e saíram os três; a sua casa agora era outra.

À janela, com a mão direita na vidraça, ela viu o carro arrancar. Ainda tentou arrumar, preparar o almoço para si. Ao ver que preparava uma sandes, deitou-se na cama e adormeceu a chorar.

um edifício mental, construído para reforçar a confusão e manter viva a chama
Sentença da Semana 54
Artista, eu?
  1. Um texto e um momento tocante!
    Ler e ouvi-lo sensibiliza de tal forma a minha alma, que um arrepio me percorre.

    Deixo um abraço, mas saio desejando as maiores FELICIDADES.
    A TODOS.

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