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I

colhe as palavras do firmamento da língua para as derramar musicalmente por brancuras de neve perfumada; embala sonhos de musgo pelas dunas do amor, descendo desespero subindo esperança; deixa no horizonte silencioso promessas de solos férteis em memórias de arranha-céus candentes e vagos; arranha a consciência do cão que apenas se tem a si para se lamber; senta no trono do jardim das cartas, consagrado às vazas passadas perdidos nas vidas inúteis de trabalho em indelével anonimato, os olhares vazios por trás das vazias calvas da inutilidade; observa o fervor no ridículo dos lances de cartas iguais, de apostas incertas na certeza do intangível; comparte a paixão pelo absurdo de nada amar senão o ideal de si mesmo; rasga o ar frio da noite retro iluminada por trás de um pára-brisas com gemidos de prazer pago com prestações de dignidade; fura o vazio da noite, ecoado de luzes tristes e de formas solúveis que se roçam num amparo mútuo de suplicante frivolidade; corta os pulsos antes do dia nascer e sente como o sol nascente se alimenta de ti, do teu sangue, vermelho cereja como as conversas que entregas ao mar interior que é a tua existência volátil; lava a cara, penteia o cabelo e sorri; primeiro sem vontade, os olhos quase a rebentar de beber o sangue que derramaste, depois, enganado o cérebro, em frente ao espelho, sorrindo para que te vejas a sorrir e acredites na maior das mentiras que contas a ti próprio; sentes-te bem, mesmo bem; tal como o dia pleno de azul se engana na infindável luz, também tu assentas a tua felicidade na mentira de seres feliz.

II

embarcas num teatro vivo de egocêntrica opulência invejosa; velados desejos de ter o mundo aos pés, a juventude em creme, o amor em comprimido, o saber por osmose, ocupam os dias que se tornam ocupados no propósito de si mesmo; conferes-te destinos que não são teus nem para ti, germinam nos teus olhos ansiosos ideais que nutres sem saber que te são tóxicos, ervas ideológicas que compras e tentas vender como tuas, sem pensar que o fel que destilas como sendo a salvação, é o produto de alguém que te tem preso e assim te quer manter; tudo é ilusão e ilusório e apenas te darás conta disso quando, privado de tudo o que julgavas ter ou querer, perante o abismo social, biológico, te enleias nos intestinos do que foi a tua luta e contra ela te revoltas; é tarde, é tarde para espernear, é tarde para maldizer a mão invisível que te guiou, é tarde para expor a trama social que condicionou os teus pensamentos; tu gostaste de ter, tu gostaste de fazer, tu gostaste de expressar.

III

estás morto a partir do momento em que dizes não, a partir do momento em que dás conta que estás condenado a ser livre para viver consumindo, para viver apenas para te manteres vivo; ninguém te liga, ninguém te dá trabalho, açoitam-te ou ignoram-te por seres tu, por dizeres o que pensas, por seres o que és, por não teres outra bandeira que não a tua consciência;

e que fazes[?]; tornas-te o barqueiro que não transporta ninguém senão o que partilha a sua alma naufraga, que fica absorto pelos ensinamentos do rio que navega nas margens, onde não há tempo nem espaço que não o som da água que corre e que te diz “sendo sempre o mesmo, nunca serei igual ao que fui nem ao que virei a ser”; livre na clausura de ter de ouvir o rio, passas a aprender com ele sobre a vontade e a sua aniquilação, sobre como te submetes à corrente para seres livre; e passados muitos anos de assim viver, quase tarde demais para valer a pena, dás-te então conta que estás fechado sobre ti mesmo, que de nada vale seres livre se estás fechado do outro, se não o és livre com o outro;

e que fazes[?]; tudo passa a um manifesto para o impossível, o rio é um pedaço de ti, deixas as suas margens com todo o seu caudal no profundo do que és, onde guardas galáxias e pastam cavalos alados de eufonias que saltam entre o sonho e o despertar; abres as comportas da ilusão e arrancas a páginas negras o negativo de uma sociedade que não existe; sorris sempre, quando te elogiam, sorris, quando te açoitam, sorris; sorris sem euforia, sem sobressalto, sorris porque entendes a razão porque se move o mundo e todos nele, sorris porque sabes que apenas sorrindo acalentas quem te elogia e desarmas que te açoita; passas então a seres tu em sintonia com o outro, quer ele o aceite, quer não.

IIII

Roda a Terra sobre o seu eixo e o sol aparenta erguer-se à tua frente; recebes a mesma luz de sempre, que todos contigo e antes de ti receberam, mas mudou o teu olhar e,  com ele, todo o mundo.

Poveiros
Azul