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Quem, como eu, tem da pesca, um conceito puramente desportivo ou mesmo fabulado, estranha como pode alguém deixar-se baixar de um lugre de quatro mastros, tendo como único escudo contra o mais despótico dos mares, pouco mais que uma dúzia de tábuas. E ainda por cima, ter de as carregar com quanto bacalhau as linhas trouxerem, fazendo a casquinha afundar no mar e baloiçar perigosamente. Eram aqueles tempos de grande fartura, sem preocupações ambientais de reposição de stocks mas também, sem excessos de sobre-pesca. Os bacalhaus eram monstros e deixavam claro que não queriam ser pescados, sendo necessário por vazes, amacia-los com uma porretada na tola. Só a imponência do peixe meteria medo ao menos experiente. Lembro-me, pequeno, quase sem irmãos, das encomendas em papel de embrulho amarelo, atadas com corda de sisal que o meu pai trazia para casa pela altura do natal. O embrulho, por si só merecia um livro, com a sua peguinha e nós aparados, mas fica para outra altura. De cura amarela ou asa branca, que é o mesmo que o primeiro, mas sem a pelezinha preta das asas, o que restou da cavidade abdominal, os rijos bacalhaus suplantavam o meu metrito mal medido e, se assentes pelas pontas em dois bancos, suportavam o meu peso. Achava um piadão ver a mãe e o pai a cortarem o bicho que, embora morto, resistia às investidas da faca com grande vivacidade; a mãe segurava pelas asas e o pai, com uma mão naquela parte fininha onde acaba o corpo e começa o rabo, cortava com a outra. Aí não! Estás a cortar muito grosso; dizia a Júlinha. Irra! Com a faca não vai lá. Vou pedir o serrote ao vizinho; chateava-se o João. Soubesse eu, de metrito, que o bacalhau que me empurravam pelo natal tinha sido pescado pelo homem da praia, no Adélia Maria, em pleno mar do norte, ao frio, ao perigo, teria posto mais azeite fervido com alho e cebolas por cima do fiel amigo e das batatas, e o teria comido com a reverência devida ao consagrado corpo do altíssimo. Às couves, essas, nem que tivessem sido benzidas por Paulo VI que era o Papa de então.

um edifício mental, construído para reforçar a confusão e manter viva a chama
O homem da praia (7)
Ponto de vista