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O Adão era um filho da puta, ou pelo menos foi nisso que o tornaram. Mas quando tinha 12 anos e eu sete, o Adão era o maior. Quando, com cinco anos cheguei à escola, ele já lá estava, e fizemos juntos juntos toda a primária. No dia do exame de quarta classe, ficou a meu lado, com o beneplácito do professor Nelson, para digamos, assegurar, aos 14 anos, a passagem no exame.
Sem saber bem porquê comecei a pedir à minha mãe lanche para dois. Acho que ele nunca me pediu nada, nem eu a ele, mas a dada altura éramos uma espécie de mestre e discípulo, partilhando o que tínhamos para dar; eu comida, ele ratice. É claro que fiquei sempre a ganhar. Pães, leite, maças e bananas foram trocados por saltar lanços inteiros de escadas, fugir à camioneta da natação e regressar à escola a pé pelo monte Aventino, descer como um bombeiro por um pilar de ferro fundido com mais de oito metros de altura (numa escola que era uma verdadeira aberração arquitectónica), e muitas outras façanhas que deixavam o professor Nelson de cabelos em pé. Além da aquisição de competências, o Adão era o garante da minha, mais do que integridade física, da minha invulnerabilidade. Ninguém me tocava, por muita maldade que fizesse, por maior que fosse o rapaz, por despropositada que fosse a acção; ninguém me levantava um remo, acertava uma pedrada, vociferava um insulto. Não me aproveitei disso como poderia, sempre fui morcão e mesmo com as costas quentes, evitava confrontos e embaraços. Andávamos quase sempre três; eu, o Zé Tó e o Adão. Na verdade éramos dois, o Zé Tó apanhava boleia. Era pequeno, muito moreno e raramente dizia coisa com coisa. Um dia o Adão meteu na cabeça que tinha de saltar o lanço de escadas da entrada da escola. E daí? E daí que, passado o portão de ferro, havia um pequeno pátio em pedra e depois começava a escadaria que dava acesso ao pátio principal da escola, o recreio. Tinha à vontade, uns 30 degraus! Do lado direito de quem desce, havia o muro que sustentava o pátio, do lado esquerdo um belíssimo corrimão de ferro forjado. Com uma mão no corrimão e outra no muro, o Adão deu lanço e lançou-se. Os primeiros 20 degraus foram na boa, os outros dez até passaram, mas o último é que se mostrou intransponível. A juntar à velocidade, apoiou mal um dos pés e caiu desamparado. Partiu um pé e perdeu um dos incisivos superiores. Ficou no hospital uma semana, em casa um mês e quando regressou, tratou de tentar de novo o salto. O professor Nelson resolveu a questão com duas chapadas, que nesse tempo as coisas eram bem resolvidas assim, e não se falou mais em recordes de salto de escadas.
Continuei a levar o lanche para o Adão e ele continuou a guiar-me pela vida que conhecia. Um dia, já na quarta classe, aparece a mãe do Adão, chorosa, melodramática, falsa, pedindo ao professor que passasse o rapaz, que a fome era muita em casa, que o pai era um bandalho, que precisava que o filho fosse trabalhar. Tenho a certeza que o Adão não era burro, que se tivesse pais como os meus ou como os teus, não precisaria da ajuda de ninguém para passar, mas, como sabemos, pouco custa ser grande a quem é pegado ao colo e ao Adão, criado na miséria, faltou-lhe ser excepcional na tenacidade ou no génio, condições sem as quais ninguém de meio semelhante, se engrandece. Lá ficou o Adão, ao meu lado no exame de quarta classe, partilhando o que penso agora, ter sido o nosso último lanche. Acabadas as aulas, feitas as despedidas, separamo-nos.
Andava no ciclo, quinto ano e, num dia de calor, aparece o Adão a vender gelados numa daquelas geleiras com bicicleta. Saí da escola e fui ter com ele. Começamos a falar como se nos tivéssemos separado no dia anterior. Sem qualquer aviso tirei uma maçã do bolso e passei-lha para a mão. Partiu-a em dois, deu-me metade e, sentado eu na bicicleta e ele em pé, de cotovelos apoiados na geleira, falamos da minha escola. Agora tens raparigas na sala? Tenho. São umas chatas, choram quando têm negativas. (Gajas)2.
Da última vez que o vi, contou-me que tinha feito a tropa nos comandos. A meio da recruta, agrediu um aspirante e foi para a cadeia. Já tinha uma filha e estava pelo desemprego por ter espetado um prego na mão. Não partilhamos nada, eu era um adolescente a acabar o liceu, ele um homem a quem tinham negado a infância. Nada mais soube dele.

um edifício mental, construído para reforçar a confusão e manter viva a chama
A lavadeira e o burro no Estudio Raposa.
O homem da praia (7)