Señor Buñuel; Señor Dali,
Há dias em que me sinto um cão andaluz. O verão, o cheiro a fim de festa, a temperatura, e dou por mim deitado na praia, em frente a um mar que nada me diz. Aí vejo passar pessoas, ondas e gaivotas com igual desinteresse. Apenas se uma leva na mão um pão com chouriço ou outra o rouba com o seu bico ardiloso, me digno focar na eventualidade do que nunca será. Ergo rapidamente a cabeça, para logo a pousar entre as patas dianteiras apontadas na direção da rapariga de olhos escondidos…
Está ali há quase uma hora e ele ainda não apareceu. Mandou-lhe uma mensagem pelo WhatsApp. Uma única. Ainda não a leu. Podia ser pior. Ler e dar-lhe ghost. Queria ligar-lhe; saber se lhe aconteceu alguma coisa; se se arrependeu de ter combinado uma manhã de praia com ela. Mas, nem pensar – So needy. Vai ficar só mais meia hora. Se calhar ele perdeu o autocarro, pensa ela descrente, escondendo as lágrimas atrás dos óculos escuros…
E de repente é noite e a lua não estava em lugar algum. Em seu lugar, um anel de diamantes ornava o céu para terror geral. Ali ao lado, uma senhora gorda ajoelha e começa a rezar, para embaraço da filha adolescente. A rapariga e o cão sentem o frio oblíquo da falsa noite. O bicho, perdido, olha-a suplicante; ela vê nele um pobre substituo para o rapaz que não chegou a aparecer e, com dois toques rápidos na coxa, deixa que ele se aproxime para o afagar. Como não lhe terá dado a mão a cheirar antes de lhe fazer uma festa, cão mordeu-a e ela, finalmente, encontrou a sua razão para chorar.
Na paragem junto à praia, ele descia do autocarro, retido por quase uma hora por um acidente entre um gnu e outro qualquer ruminante. Do alto do murete que separava a praia da calçada, dividia o olhar entre o desejo de a encontrar e a noite inusitada, coroada pelo anel de diamante. Tirou o telemóvel da sacola e reparou que estava em silêncio. Fo@*-se! Uma chamada mãe – já vai tarde; várias notificações do tik tok – esquece; uma notificação do WhatsApp – era ela.
Dizia apenas: Olá. Já cá estou. 🩷. Todo ele se ouriçou. Não se perdoava por não ter reposto o som do telemóvel quando saiu da aula de código, e nem saber que o seu atraso nada tinha a ver consigo o descansava. E agora? Como explicaria não ter lido a mensagem? Independentemente da resposta ou justificativa, seria seguramente interpretado como não tendo interesse por ela ou mostrar, com a não resposta, um desrespeito geral pelas mulheres. Contemplando a praia escurecida e os veraneantes atónitos, num misto de desalento e esperança, o anel de diamante desaparece e, muito gradualmente, devolve o dia.
Ela chora mais ao ver o sangue escolher-lhe da mão, revelado vermelho vivo pela luz do dia. Em desespero, escreve: Ajuda-me. Fui mordida por um cão andaluz. Estou junto ao azevinho. Enviou a mensagem sem saber bem porquê, mas apenas porque sim. Ele recebe-a e responde de imediato: Já te vi. Vou já.
Encontraram-se debaixo do azevinho. O dia tinha regressado ao seu normal e a mão dela parara de sangrar. Não havia sequer sinal de ter sido mordida. O cão andaluz não teria sido mais do que um artifício do eu literário. Ele, a medo, contou-lhe do acidente entre um gnu e um outro qualquer ruminante. Pediu desculpa por não ouvir telemóvel e não ter respondido à mensagem. Ela, sorriu e disse-lhe que chegou a temer que ele não viesse. Não. Não. Viria sempre, disse ele, encantado. Gosta dela desde que a viu no bar da escola, a beber um merlot.
– E eu de ti, desde que me disseste que a adaga era a minha cara.
– Pois era. E foi pena tu tê-la espetado na perna do stôr de física.
Riram. Depois partilharam a toalha dela como assento e a dele como agasalho e ficaram a ver o sol incendiar que, em jeito de despedida ardente, parecia passear um pequeno cão rafeiro.

