Olhou-se ao espelho na tentativa de se recordar do que foi. A memória que surgiria do nada para a ‘absolutez’ do consenso histórico. Assim como um mágico, não um ilusionista, mas um verdadeiro mágico, retira um comboio de lenços coloridos de um dedal entalado entre os dentes, viria a si a memória de quem foi. Olhava-se suspirando pelo Homem que haveria de sair do incógnito do seu desejo. Altivo, cavaleiro e sábio, a sua sombra, tão grande no medo dos olhos dos seus inimigos e o seu abraço paternal, tão firme e vasto como o amor dos seus soldados e súbditos. O seu poder media-se na proporção inversa dos movimentos que executava. Uma única sobrancelha movia batalhões, um leve gesto de mão abria mares, desviava rios e derrubava montanhas, um dedo gelava nações e todos os corações nelas. Brilhava na intemporalidade do seu absolutismo. Era incontornável, inconfundível e inevitável. Era único, a origem, o exercício e o fim de tudo e todos onde o seu nome era pronunciado. Feliz na forma como de todo o seu ser irradiava poder, no que dizia e ordenava, na forma como se movia, no que excretava. Cuidava-se, cuidavam-no, completo, burocrático, perfeito.
Certo dia ela, passando ao lado do jardim onde ele preparava campanhas de conquista e glória, embalada de juventude e perdida numa canção, não se deu conta que ele a fitava plácido e não se prostrou. Logo teria lugar a agonia permanente às mãos dos tratantes e a morte anunciada de todos os seus queridos. Eram essas certezas que lhe enchiam a cabeça à medida que se aproximava do cárcere. Ao atravessar o pátio do castelo, desesperada, mas altiva e bela, mal ouviu a voz dele, por ser firme, doce e calma, ordenar que a colocassem em frente ao alvo onde praticava a sua exímia pontaria. Recusou a venda e olhou-o de frente, num último ato de coragem e súplica. Mal viu o virotão sair da besta ornada a madrepérola e ouro e não deu conta de se extinguir. Acabara como começara: incógnita, imperceptível e imponderável.
Nessa noite, já no quarto desimpedido de cortesãos e criados, adormecida a freira dileta, alumiado de velas com pavios embebidos em venenoso selénio para que ardessem mais intensamente, deu-se conta que o homem para lá do tempo que sempre tivera à sua frente e que ele mesmo temia e amava, tinha desaparecido. Era agora uma miragem no reflexo distante de um ser místico pedido no tempo. Desaparecera permanecendo, como uma grande árvore que continua de pé, à vista de todos que a crêem viva, exceto a própria que intimamente sabe não ser mais do que uma projeção de um ser tetradimensional. Desaparecera e o que restava de si, tal como a árvore, estava em demonstração na porta mais concorrida do castelo. Suportando um corpo de marioneta, uma face seráfica e ainda bela, de penetrante olhar, doce e morto, por um virotão cravado na testa alva em rosto escorrido de sangue seco e frio.