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Poderá a escrita valer por si própria? Poderá o texto ter valor meramente estético? Não ser portador de mensagem, não contar uma história? A promoção da saúde é boa para quem toca alaúde. Os fornos Ramalhos nunca deveriam estragar soalhos. E aquele homem que passava muito tempo nas paragens, nunca ninguém o viu entrar ou sair do autocarro. Numa mão segurava um guarda chuva (fizesse sol ou fizesse chuva), na outra, sustinha uma saqueta de plástico, meia enrolada, apertada pela boca. Um rapaz passava sempre pela montra de trás da tabacaria que dava mais compostura à paragem e fazia dela mais do que um cais de embarque e desembarque. Ali se comprava tabaco, senhas do autocarro, chiclas e rebuçados, jornais revistas – também aquelas na montra de tras que o rapaz não se atrevia a comprar –, isqueiros e fósforos, lenços de papel; as revistas de novelas, de mexericos, de carros; a Dragões e os jornais desportivos; vendia brinquedos – não que alguém os comprasse –, carrinhos e bonecas; ah, havia também cromos e cadernetas – Minha senhora dê-me uma cardeneta. – Já te dei duas. Vai à tua vida. Dava a volta e, entre dentes, murmurava – Vaca! E seguia para a escola. Subia a rua, saltava o mais que podia para tocar com a mão no topo de todos os sinais de trânsito que encontrava no caminho. Mais ou menos a meio, havia uma pedra, um quartzo num muro de argamassa e pedaços de granito que desde que começou a segunda classe, andava a tentar soltar. Naquele dia, o último da quarta classe, feito o exame final e já em tempo de descompressão e avisos de como a preparatória pode ser enganadoramente fácil, trouxe um calhau na mão; calhau não, um seixo, um seixo grande, pesado, redondo e polido. Até dava pena esfarela-lo usando-o como martelo. – Não passas de hoje, pedra presa no muro. Primeiramente avaliou o trabalho realizado nos últimos dois anos: abanou a pedra, puxou-a para si e depois empurrou-a de volta ao muro. Bufou várias vezes para o buraco de modo a remover o pó e as areias soltas; depois puxou-a o mais que pode. Levantou o seixo com as duas mãos e deteve-se. Passava uma senhora com olhar reprovador. Deixou-a afastar-se, reclamando com a pose do rapaz ou com ela mesmo, e voltou a levantar o seixo… – Agora é um gajo; não ligou, fixe. Agora é que é: Pedra presa, aí é que não te deixo. Prepara-te para saíres a golpe de seixo. Amandou o seixo com toda a força, mas falhou a pedra. Se calhar seria melhor não largar a pedra e usa-la como um martelo. Não vem ninguém, pensou, por isso cá vai. Uma e mais outra seixolada de cima para baixo e a pedra entalou. Agora ao contrário. – Foda-se! O seixo fugiu e a mão raspou no muro. O rapaz limpou as areias das costas da mão e viu uma data de arranhões, dois eram bem mais do que isso. Cuspiu na mão, esfregou e lambeu o sangue, limpou depois o que pode ao lenço branco que era do pai, guardou-o no bolso e voltou a pegar no seixo. Nem pensou que o sangue seco é danado para sair e que a mãe iria falar com ele sobre esse assunto. Prevenido, bateu com mais juízo do que força que é o que sempre lhe disseram para fazer mas, sem saber como, raramente o aplicava. Alternava pancadas de cima para baixo com pancadas de baixo para cima. A cada dúzia delas, pousava o seixo, lambia o sangue da mão e com a canhota empurrava e puxava a pedra. A cada duas dúzias, limpava o suor da testa e fazia subir os óculos grossos ao longo do nasal. Estava quase, tal como um dente de leite que se sabe quase solto mas suplanta-nos o medo de que qualquer que seja a força, por mais comedida, seja desmesurada perante tamanha fraqueza, impedindo dessa forma a sua extracção. O seixo estava todo escavacado. Perdera a sua forma redonda e a sua textura polida. Merecia uma medalha. Uma pancada tesa, corajosa, tal como o rodar de um dente de leite, e o seixo partiu e a pedra saiu e a pedra caiu ao chão e a metade do seixo que se soltou do todo foi acertar-lhe na canela. A dor fazia com que grossas lágrimas corressem pela cara de felicidade do rapaz. Os seus olhos brilhavam, não das lágrimas, mas do reflexo do drapeado ondulante do vestido de Nice. Conseguiu, tirou a pedra, está no meio do passeio, livre. Encostou-se ao muro, lambeu a mão uma última vez e levantou a perna da calça: grande papo; vermelho e quente. Nunca se sentiu tão bem; dificilmente voltaria a sentir-se assim. Passa uma senhora e quase tropeça na pedra. Larga os sacos das compras para evitar males maiores. Deita a mão ao muro e solta um ai esganiçado e desafinado. O rapaz fica a ver as batatas e as maçãs rolarem por ali enquanto que a couve e o saco de feijões, mais responsáveis ou cientes que o esforço seria inútil, optaram por não fugir. Esqueceu a dor e correu a ajudar. Apanhou tudo à senhora e ajudou-a a guardar tudo nos sacos. Ao ver a mão cortada, as bochechas magras entrecortadas de lágrimas e o recém formado hematoma na canela, achou que também ele tinha caído na pedra e, muito maternal esqueceu o seu percalço. Deu-lhe uma maça e levou-o à farmácia mais acima para que lhe fizessem um curativo. Antes de ir, pegou na pedra e devolveu-a ao buraco. – Depois da escola, volto e levo-te daqui. A pedra ficou a imaginar como seria a sua vida com o rapaz. Onde ele a colocaria, se a levaria de férias, que estavam a chegar, se a exporia como troféu, prémio por um esforço demorado, se sairia com ele quando casasse, para a casa que haveria de ter. A pedra não fazia ideia que o rapaz partiu a tíbia e não voltaria por ela. Que ela não era nem troféu nem donzela em torreão altaneiro, guardada por um dragão e que só passados muitos anos, já adulto, com o filho pela mão, voltará a ela, a tirará do seu muro com um simples puxão e, passando-a ao filho, dirá: – Foi esta a pedra que soltei com o seixo que me partiu a perna e que tenho na secretária. O filho, segurando a pedra nas duas mãos, pergunta ao pai porque está a pedra molhada se o muro está seco? Ergue os olhos e vê o pai como nunca o viu. Destroçado. Perdido. Consumido pela culpa. Pega na pedra das mãos do filho e chora com ela num abraço que só um português pode dar e só consegue jurar-lhe que não sabia que não sabia. A pedra limpou as lágrimas a ambos, beijou-lhe o filho e seguiu o seu caminho. Foi ter a uma savana e aí esperou a morte. Na boa parte do ano, a pedra não via nada, tapadas as vistas pela erva alta. Apenas após a chegada dos gnus que pastavam a savana à exaustão é que tinha vista sobre a amplidão daquele lugar. Uma acácia aqui e outra ali, zebras que se escondem entre o milhão de gnus, leões que as procuram, hienas que seguem os leões e chacais e abutres que os seguem, debaixo e de cima, e aguardam. Um dia, um rinoceronte cagou-lhe em cima, impedindo-a de ver o que quer que fosse durante o tempo que foi necessário a que dois escaravelhos bosteiros a tivessem limpo de cima a baixo e em todos os entalhes. Ficou nova. Até lá, não tinha mais que confiar à audição as notícias daquele lugar. Ouvia conversas sobre o recorrente atraso das chuvas e qual a precedência dos ruminantes na tosquia da erva. As opiniões variavam, consoante a espécie que as emitia, mas gerou-se um consenso mais ou menos alargado segundo o qual se daria primazia às gazelas que comeriam os topos mais tenros, ou isso ou nada, dado serem bichos frágeis de boca e de estômago; seguiam-se as zebras, os búfalos, os rinocerontes e antílopes graúdos, comendo o que ficava abaixo, digerindo tudo nas diversas panças; por fim, quando a erva já dava mostras de revolta e crescia grossa e dura, viriam os gnus, com os seus dentes da frente, tipo raspadeiras, e aparelhos digestivos capazes de arrancar a ínfima réstia de nutriente à mais lenhosa planta, acabar com a raça da erva até depois da próxima estação das chuvas. Foi esta a conversa que ouviu, sem saber se era mesmo assim ou se haveria uma outra ordem natural ou imposta despoticamente por alguma espécie mais forte. Ouviu então um estalo que ressoou por toda a savana e fez debandar a heterogénea manada e logo um corno de búfalo lhe acertou em cima, limpando-lhe parcialmente a bosta já seca, deixando-a ver o corpo inerte da besta. Cortaram-lhe a cabeça ali mesmo. Ia o serviço a meio quando alguém reclama a estranheza por estar um quartzo naquele lugar. – Queres levá-la? – Não. É só uma pedra. Que ainda assim não deveria aqui estar. Mas estou, pensou a pedra; e isso faz de mim mais do que sou. Embora inerte, pulsa em mim um universo. Ensacada a cabeça do bicho, foi entregue a um taxidermista perverso, o mesmo que confeccionou o ornitorrinco, a equidna e a lula vampiro, que tratou de a embalsamar e preparar para uma viagem que a levaria às longínquas paragens de Portugal. Do alto da parede, sobranceiro ao estúdio, barra sala de fumo, barra chuto, barra antro de conspirações, barra antecâmara do Pleroma, ouviu e viu com olhos de vidro (porque os de búfalo a terra comeu) o que poderia ter sido o nascer de um novo Portugal. O peixe pergunta ao demiurgo: – Serei eu o escolhido? Ao que este responde perguntando: – Que te disse a minha irmã? – Que saberia. – E sabes? – Sim. Não sou o escolhido. Ficaram quietos; o demiurgo sentado, comandando o que julga comandar-se a si próprio; o peixe em pé, hirto, de pernas afastadas, lábio inferior sobressaído e pescoço esticado, como se preparasse para marcar um livre directo a trinta metros da baliza; olha o horizonte do Mundo e os olhos de vidro do búfalo esforçam-se por apanhar o reflexo.

Há uma aranha na minha casa de banho
A razão da escrita