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Sobre a lentidão

Flores cor-de-laranja

Pode argumentar-se que as velocíssimas sociedades ocidentais apreciam, ainda que sem o desejar verdadeiramente, o passo lento dos estados e das coisas que se apresentam a um ritmo tal que permite escrutinar, ou ser escrutinado, de uma forma global, ponderada, reflexiva e completa. Ou seja, onde a percepção e usufruto desses estados ou coisas, advenha, em primeiro lugar, da possibilidade ou da capacidade de os perceber ou usufruir sem que a quantidade de tempo necessária para o fazer se torne um obstáculo a essa mesma percepção ou usufruto. Tempo, aqui entendido enquanto medida da dimensão humana e não Tempo na dimensão universal, revela-se um obstáculo, talvez o mais significativo, à cabal percepção ou usufruto de um estado ou coisa, quando este (o tempo) escasseia ao agente. Quer porque o agente não dispõe de tempo em quantidade suficiente, quer por não querer dedicar, a esse estado ou coisa, a quantidade necessária para o perceber ou usufruir na forma que primeiramente caracteriza, e dá substância, esse mesmo estado ou coisa. Um segundo obstáculo à perceção ou usufruto de determinado estado ou coisa por parte do agente, está ligado à sua incapacidade para o perceber ou usufruir dada a elevada velocidade a que este se desenrola e para o qual, ele é fisicamente incapaz de o perceber ou usufruir. Exemplos disso são.    os relâmpagos, o voo picado de um falcão, o disparar de uma arma ou o desenrolar vertiginoso de uma corrida de velocidade.

A perceção de um qualquer fenómeno ou realidade é afetada pelo ritmo a que ocorre (Kahneman, 2014), no sentido em que uma perceção mais aprofundada requer mais tempo para a sua aquisição, processamento e incorporação da experiência. No mesmo sentido, (Fortuna, 2009) defende que a perceção e consumos lentos, favorecem o bem-estar e a satisfação. George Simmel e Walter Benjamin estudaram como experiências não vividas por fruição simbólica através de representações lentificadas são elas mesmas substitutos às experiências vividas pelo agente e capazes, tal como as vividas na primeira pessoa, de ampliar o grau de atenção e empatia, providenciando prazer sensorial e contemplação reflexiva.

Defende-se que não poder perceber ou usufruir de um estado ou de uma coisa por não ter o tempo necessário para o fazer, ou que por optar não lhe atribuir o tempo suficiente para o perceber ou usufruir, resulta numa frustração decorrente de um objetivo não cumprido. Essa frustração poderá pedir, como comum à natureza humana, a procura de substitutos que tornem possível, ainda que de forma incompleta, o cumprimento desse objetivo, mitigando assim a frustração manifesta na incapacidade de perceber ou usufruir de um estado ou coisa de uma forma global, ponderada, reflexiva e completa. Daí que, e apresenta-se assim o argumento, de que as manifestações de realidades bucólicas, assim como as representações visuais de realidades não bucólicas quando vistas a uma velocidade inferior àquela a que naturalmente ocorrem, vulgo em câmara lenta, são prazerosas e logo, substitutos à perceção e usufruto de estados ou coisas que requerem um ritmo lento, em termos de velocidade de aquisição, de um forma ponderada, reflexiva e completa.

Seja a languidez transmitida por uma paisagem natural ou rural, o inspirador pairar de uma ave de rapina no silêncio do céu azul ou pessoas caminhando lentamente por uma praia na contraluz do pôr do sol, mas também atividades humanas, sejam mundanas ou extraordinárias, são suscetíveis de provocar sentimento idêntico à perceção ou usufruo dos estados e das coisas que se apresentam a um ritmo tal que permite escrutinar, ou ser escrutinado, de uma forma global, ponderada, reflexiva e completa. A permanência contemplativa num determinado espaço, não habitual ao agente, remete-o para um estado de espírito onde acredita ser possível uma perceção ou usufruto com maior detalhe do que habitualmente será capaz num espaço que lhe é habitual. Do mesmo modo, o visionamento de realidades visuais tecnicamente desaceleradas, de tal forma que o agente se veja agora capaz de, dentro das capacidades dos seus sentidos, ter uma perceção ou usufruto mais detalhada de um estado ou coisa, remete-o, também, para um estado de espírito que poderá ser descrito como prazeroso, sendo portanto fonte de bem-estar e satisfação.

A argumentação até agora apresentada conduz a uma constatação algo surpreendente, mas antiga, pois que sendo o tempo dispêndio perante um estado ou coisa, ou a dilatação deste via a diminuição da velocidade a que esse estado ou coisa é percebido ou usufruído pelo agente, é o fator determinante na forma como esse estado ou coisa e vivenciado e qual o impacto no seu bem-estar. Daí que se poderá afirmar que o agente extrair maior prazer de um estado ou coisa na relação inversa da velocidade a que esse estado ou coisa é percebido ou usufruído. E isto independentemente do estado ou coisa a ser vivenciado. Tomem-se como exemplos, uma explosão em câmara muito lenta, elevando um objeto no ar, um crocodilo rompendo a serenidade de um lado para abocanhar um antílope, ou, no oposto, um bailarina rodopiando ou uma criança dando os seus primeiros passos tentando alcançar um patinho amarelo. É o ritmo a que o estado ou coisa é percebido pelo agente que determina o grau de prazer que lhe proporciona e não o estado ou coisa em si, nem as pré-concepções que o agente tem sobre esse estado ou coisa. A constatação, surpreendente, mas antiga, é a de que a beleza está (e sempre esteve) nos olhos de quem a vê.

Antecipa-se desde já duas linhas de argumentação contrárias à apresentada. A primeira relativa à beleza intrínseca e ao conceito de belo, a segunda relacionada com a moralidade e com o que é certo e errado. Aguarda-se expectante.

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