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– Porque é que escreves sobre suicídios?
– Que coisa tão triste. Não percebo.
– Dê a volta. Escreva sobre a vida.
– Escreve sobre coisas alegres. Assim ficas deprimido.
– Onde vais buscar essas ideias?
– Vá lá. Escreva para os seus filhos…
– Deixa esses pensamentos tristes que ninguém gosta de ler.

E porque haveria de deixar? Haverá razão para dar ao desprezo do ‘não tenho tempo para isso’ ou do ‘isso nem vale a pena perder tempo a pensar’, razão para dar ao desprezo o aperto no coração de uma mulher, imaginária como tantas outras, que perde a sua amada? Em que é menor a dor de se sentir desterrada, perdida num mundo frio? Em que é vão o percurso de uma bala em direcção ao cérebro? Não se trata de dar voz aos que escolheram cala-la; não se trata de exorcizar sombrios fantasmas interiores que ameaçam a vida visível; nem tão pouco encontrar razões para lutar contra ou a favor do mundo. É apenas o Daimon que me fala. Esse que nasceu comigo, que nasce com todos nós, que nos guia pela vida de forma plural e livre, se assim o ouvirmos e deixarmos que nos guie. É ele que nos dá as máscaras para sermos quem julgam sermos, é ele que nos faz enfrentar quem nós somos verdadeiramente. Só ele nos ensina a aceitar a multiplicidade de que somos feitos. Disse-me em tempos o meu Daimon que existe em mim, para além do fanático clubista, do trabalhador moderado, do pai e marido excelso (obrigado), do filho e do irmão e do amigo, disse-me que existe em mim um utópico, um pervertido, um crente, um inocente, um ladrão, uma mulher, um hipócrita, um poeta, um lamechas, um suicida. Disse-me depois que deveria dar voz a todos eles.
– Eleva-te daquilo que aparentas ser. Esforça-te por seres mais do que os bichos ou a erva que eles comem, que também eles nascem, vivem e se reproduzem. Deixa leves marcas nos outros: sorrisos; temores; asco; lágrimas; desdém; pensamentos incómodos; pensamentos reconfortantes. Fá-lo por ti. Não o faças pelos outros, por próximos que sejam, nem pelos teus pais ou pelos teus filhos. Sê tu em tudo aquilo que és. Mostra-te para além daquilo que esperam de ti. Se te acham um terra-a-terra, mostra-te poeta; se te acham educado, manda-os à merda; te acham resignado, revolta-te; se te acham confiável, engana-os; se te acham sectário, faz-te imparcial; se te acham quezilento, revela-te pacífico; se te acham justo, mostra-te déspota. Assume a tua pluralidade. Congemina tramas em que és o mau da fita. Expressa a mais profunda dor por alguém que apenas roçou ao de leve a tua vida. Parte em busca do Santo-Graal. Relembra a inocência das histórias que a tua avó te contava. Imagina-te envolto em medos que não são teus. Cria mundos simples para os teus filhos.
Põe tudo a preto-e-branco e depois mistura tudo. Dos cinzas, constrói mundos.

Pessoa
Nada como a dor