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Polvos

Polvo

Rapaz, apanhava polvos nas pedras expostas pela maré baixa. Munido de uma vara feita por mim, com três ou quatro metros de comprimento, de acácia, toda ela descascada e alisada à mão. Numa das pontas, quatro anzóis grandes, equidistantes, apontados para a ponta oposta e ligeiramente angulados para a esquerda. Completava o instrumento, o isco, com duas sardinhas bem gordas, daquelas da maré do São João, embrulhadas em ligadura, gentilmente oferecida por uma senhora que era enfermeira.

Quando a vaza despertava com o dia, fosse ele nublado melhor, descia logo cedo a praia deserta de gente e livre da opressão do sol, em direção às pedras e aos rochedos que tão bem conhecia. A frescura da manhã aconchegava-me o corpo. As aves, em voo rasante ao horizonte, cumprimentavam-me na sua indiferença. O som das ondas preenchia a minha mente até nada mais nela caber. Sem o saber, partilhava o gosto de Mário de Sá Carneiro por aves e lágrimas.

Por vezes, felizmente poucas, os polvos facilitavam-me a vida, porque, talvez surpreendidos pela rápida vazante, tomavam refúgio numa depressão talhada na pedra pela insistência dos milénios. Ali ficavam, indefesos, excessivamente confiantes nas suas capacidades de camuflagem. Nem usava a vara, para não gastar o óleo das sardinhas. Com uma destreza conseguida a custo de ser mordido, apanhava o polvo pela cabeça e, de um gesto rápido, diria até violento, atirava-o contra uma pedra. O bicho, ferido e desorientado, dificilmente conseguia ripostar a ser virado do avesso. Cruel, mas saboroso.

Nas covas mais fundas, nas fendas das pedras, nos pequenos canais cavados pelos mesmo milénios que trabalharam as depressões nas pedras, usava a vara. Poucas vezes o isco ficava à vista, sendo que apenas aí podia confiar na vista para saber quando puxar a vara e prender o cerebral animal. Regra geral, o isco ficava escondido pela fundura da água, por ser metido debaixo de uma saliência ou mergulhado num canal fundo. Aí, sempre pronto para rodar e puxar a vara num movimento brusco, prendendo o polvo tentado pela sardinha e pelos saborosos óleos que delas brotavam, desligava-me ainda mais do mundo, das aves e das lágrimas, do som das ondas. As impressões da maré e das suas correntes, o ondular das algas e o depenicar dos cabozes, chegavam à minha mão, telegrafados pela vara, formando um ruído de fundo familiar, um contínuo que aprendi a desligar do subtil e impetuoso ataque do polvo.

Poucos escapavam, e tinha polvos para dar e vender. Quando, lá para fins de julho, ouvi, Filho, gostamos de polvo, mas já chega, dei a vara a alguém cujo nome não me lembro, peguei na bicicleta e pedalei até Espinho, onde jantei com o meu adorado tio Armando.

Flores cor-de-laranja

Sobre a lentidão

Mãos ensanguentadas com vidro quebrado

Cortar