Naquele dia, Germana decidira-se. Falaria com Ateneu, motorista dos STCP que fazia, há mais anos do que conseguia lembrar-se, a linha que passava à sua porta. Dir-lhe-ia como gostava das conversas que mantinham nos trajetos diários, geralmente entre a sua casa e a baixa da cidade, onde ia regularmente para fazer compras, ver as montras, fazer um ocasional exame médico ou uma consulta de especialidade, ou uma rara visita ao local de trabalho do marido. Dir-lhe-ia que apesar de ter vários motivos para se deslocar à baixa, e dela regressar a casa ao fim de cada tarde, cada vez mais apanhava o autocarro que Ateneu conduzia apenas para o ver e com ele conversar. Que o seu coração, a cada viagem, se enchia de paixão na proporção dos sorrisos marotos e piscares de olho atrevidos dele. Que ansiava pelos minutos da viagem em que ele apenas se distraída dela quando voltava a sua atenção para a estrada e os outros automóveis, os pedidos de paragem das pessoas que aguardavam nas sucessivas paragens e na campainha que sinalizava a intenção de saída de alguém.
Naquele dia, o acumular do afeto demonstrado por Ateneu nas sucessivas viagens, encheu-a de coragem e resolução para dar o passo que há muito desejava. Sair da casa onde o marido, disperso entre trabalho, futebol e jogos de sueca com amigos, quase nunca estava, e o filho, crescido e emigrado, há muito abandonara o ninho. Preparou cuidadosa e pensadamente um trolley e uma mala grande. Roupa, a melhor da muita que tinha, artigos de higiene, algumas fotos do filho e da sua família que deixou em Lousada, quatro pares de sapatos, embrulhados em película aderente e documentos. Não tinha muito tempo entre a saída do marido para o trabalho e a primeira ronda de Ateneu. Mas, como sempre foi diligente e organizada, e, motivada pelo desejo e expectativa, executou a tarefa com fluidez, graça e gosto. Ligou para o telemóvel de Ateneu e, sem lhe dizer que seria hoje que fugiriam juntos, deixou escapar que o amava e que se veriam quando este passasse no seu autocarro. Ateneu, desculpando-se por ter o autocarro cheio, despediu-se com um beijo e desligou. Ela retomou a sua lide. Arrumou o pouco da casa que necessitava destino, tomou um café e saiu da cozinha depois de ter deixado a máquina da loiça a lavar. Arranjou o cabelo e, percebendo que havia arrumado a escova de dentes, retirou uma nova da gaveta do armário. Ainda pousou a escova junto à do marido, mas ao vê-la com as cerdas cambadas e cheia de resíduos de pasta de dentes, apercebeu-se que destoava junto da sua escova nova. Logo a secou com a tolha, enfiou-lhe uma carapuça plástica e guardou-a no bolso do casaco. Antes de sair, pegou nas chaves de casa, mecanicamente, sem dar conta, como sempre fazia. Fechou a porta e desceu os poucos metros que a levariam à paragem de autocarro. Eram onze horas.
As vizinhas não deram conta que saía com malas. Talvez por ser a hora das limpezas ou por terem ido às compras, não houve olhares, tão pouco comentários vindos das janelas, abertas ou fechadas, das casas entre a sua e a paragem de autocarro.
Eram onze e vinte e o autocarro conduzido por Ateneu já deveria ter passado. Sabia de cor os horários e também que a linha era pouco dada a atrasos ou supressões. Lembrou-se que certo dia, um acidente numa rua mais acanhada, bloqueou o trânsito, impedindo a passagem de veículos pesados, autocarros incluídos. Tal sossegou-a. Foi isso mesmo que aconteceu. Um acelera ou um incauto, precipitou o seu carro contra outro e agora estão ali parados, à espera da polícia, prejudicando diretamente centenas de pessoas e, indiretamente, o seu coração que bate ansioso.
São onze e quarenta e cinco e vem lá um autocarro. Faz sinal de paragem, num gesto alegre e pueril. Mas logo se detém ao ver que não é Ateneu quem o dirige. Perante a porta aberta e o olhar circunspecto do motorista, desculpa-se por não subir e vê o autocarro partir.
Às uma e trinta, quase duas horas depois de Ateneu ter falhado a passagem, eis que um novo autocarro desce a rua. Pelas suas contas, esta é uma ronda de Ateneu. Enxuga as lágrimas que começaram a cair há cerca de 20 minutos e, já sem alegria, mas ainda esperançosa, faz sinal de paragem. Perante a porta aberta e a frieza do estranho que aguarda com as mãos no grande volante, pergunta a medo por Ateneu. O motorista, rapaz novo, na idade e na linha, responde que não conhece o colega. Lamenta-se por ter sido chamado à última hora para fazer aquele trajeto porque o motorista habitual, a meio do serviço, disse sentir-se mal e pediu dispensa.
Ainda ficou na paragem até às duas horas. Viu passar mais um autocarro, mas já não lhe fez paragem. Dentro, poucos passageiros e um motorista. Por fim, lembrou-se que tinha a chave de casa no bolso e a ela regressou sem reparar na plateia das vizinhas que entretanto se formara. Devolveu o conteúdo das malas aos seus respetivos sítios e adormeceu desamparada. Eram três e meia da tarde e Germana esmorecera da vida.

