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E não sobre toiros e toirada, porque sou do Norte e, como a tantos outros nortenhos, a tourada pouco ou nada me diz culturalmente. É então como nortenho, citadino e urbano e humanista que me refiro a touros e tourada.

Sempre imaginei um mundo perfeito, no qual ser dever de cada um, lutar pelo bem de todos. Imagino que muitos o façam com igual desejo, genuíno e dedicado. O meu mundo perfeito, aquele pelo qual luto, não é o mundo que eu gostaria para mim, qual ditador benigno numa ilha pequenina, pai e condutor e bússola moral dos meus concidadãos. O meu mundo perfeito seria um mundo vário e plural, onde tolerância (vão lá ver), seria a primeira das palavras obsoletas, pois é sinónimo de indiferença paternalista, contrária a uma vivência empática e fraterna.

Por isso, no que toca a touros e touradas, digo que, para mim, se elas tivessem acabado ontem, eu não teria notado, e o mundo seguiria como sempre. Mas sei que tal não é o caso para muitos. Tenho um amigo, alentejano, médico, cirurgião maxilo-facial que na juventude foi forcado e me diz: Pedro, o bicho enche-nos de vida. O toiro está tão presente na minha vida fora da arena, como quando eu estava, na arena, frente a ele, a sentir-lhe o resfolegar e o tremer do chão de cada vez que ele batia com a mão na poeira. Por não ter pai e mãe que amassem o touro, por não ter vivido uma cultura do touro bravo, não tenho em mim o amor pelo touro, nem nunca terei.

Mas sei, porque vejo e ouço e converso, que touros e touradas são parte integrante e importante da cultura e do modo de vida de muitos milhares dos nossos concidadãos. Por esta altura, assomarão à mente e à boca comentários mais ou menos impróprios sobre o que digo e porque o digo. Percebo-os, mas não os acolho. Tenham paciência (ou então, tchauzinho).

Vejamos o que poderia acontecer se decidíssemos valorizar unicamente o bem-estar do touro e as touradas acabassem amanhã. Atividades económicas ricas e diversificadas, numa das zonas mais deprimidas do país, acabariam de um dia para o outro. A produção de artefactos tauromáquicos como roupas, capas, bandarilhas e equipamentos para os animais, rapidamente desapareceriam ou ficariam reduzidas à expressão mínima e desfigurada de íman para frigorífico de turista. O valor económico da realização dos eventos desapareceria.

A seu tempo, ganadarias e coudelarias fechariam, e seriam perdidos todos os seus postos de trabalho. Campinos, ferreiros, até apontadores, engrossariam filas de desemprego e o decair das populações do interior. O montado e a lezíria, essas paisagens glorificadas do Alentejo interior (talvez a única forma de impedir o avanço da desertificação no sul de Portugal), desapareceria em poucos anos, com elevados custos ecológicos e ambientais. Animais que dependem desses habitats, como linces, abutres, abetardas, águias, estariam em perigo e entre eles, o touro bravo pois, perdido o seu valor económico, em poucos anos, seria declarado extinto.

E gritais: todo o valor económico, social e mesmo biológico de nada vale perante o sofrimento que se impõe aos animais. E é certo que é de sofrimento que se está a falar. Esta é, sem sombra de dúvida, uma atividade humana que aplica sofrimento a outros seres vivos. Mas e então porque confinamos, para entretenimento, animais em jaulas e cercas de zoológicos; e porque se comem, sem remorso, abacates, porque se usam, sem culpa, telemóveis e porque se comem, sem limite, amêndoas da Califórnia? Os primeiros são provenientes de uma agricultura que para lá de destruir solos, destrói vidas de agricultores colombianos (mais do que a coca); os segundos são um atentado à natureza e um vilipêndio para crianças indonésias e centro-africanas; as terceiras são responsáveis pela agricultura mais destrutiva do planeta e pelo extermínio, por safra, de 2,5 milhões de abelhas, por hectare, de terreno cultivado.

Quando a insulina era obtida a partir dos pâncreas de bois e porcos, as condições para a sua produção eram tudo menos humanas para estes animais (felizmente tal acabou, pois agora, graças à técnica do DNA recombinante, a insulina é sintetizada a partir da manipulação do gene da insulina obtida em embriões humanos com uma bactéria – homens e mulheres de fé diabéticos, atendei à vossa alma eterna). Há diferenças; há, a insulina mantém centenas de milhões vivos; a tourada é entretenimento. Sim, é certo que assim é; mas não apenas. É fonte de riqueza económica; raiz e identidade; é, goste-se ou não, uma forma de se ser português.

Quantos dos nossos concidadãos sofreriam, económica e culturalmente com o fim do sofrimento do touro bravo? Não sei responder em concreto, mas seguramente dezenas de milhar. Porque não colocar a mesma compaixão prestada ao touro (tantas vezes de forma infantil e superficial), nessas crianças, mulheres e homens portugueses? Nada justifica o sofrimento do animal; ainda que isso leve à sua extinção; dirão os detratores da tourada. É uma opinião que percebo fazer sentido na cabeça de algumas pessoas cujo modelo de vida pende sobre o bem-estar de todos os seres vivos, ainda que de forma maniqueísta e desconexa do todo social.

Outros, talvez a maioria, apenas defendem o fim das touradas pelo mais absoluto desconhecimento de causa e desligamento do mundo rural, da mentalidade dos homens e mulheres que lá vivem e do mundo natural que encaram como algo pitoresco, visto em séries de natureza, da janela aberta do carro ou da borda da piscina no turismo rural chique, esgrimindo o argumento de que o bem-estar de muitos não justifica o sacrifício de um que seja.

O mundo não é a preto e branco, nem as nossas cabeças deveriam ser, ainda que os tempos pareçam correr cada vez mais dessa forma. Por cada touro que luta e sofre na arena e morre depois num matadouro, como qualquer outro bovino, dezenas de touros bravos vivem vidas longas, tranquilas e livres, nas lonjuras do montado e da lezíria. Por cada corrida de touros que se realiza, mantém-se populações em zonas economicamente deprimidas; reafirma-se a portugalidade; atam-se gerações. Há continuidade e propósito nas touradas. Um touro é um animal que só existe porque nós o fizemos assim; tal como uma galinha, um cão ou um cavalo. Ainda que não se compare a uma vaca leiteira ou a uma galinha poedeira, aberrações do ponto de vista natural e que apenas existem porque nós as fizemos assim, o touro bravo apenas existe porque ocupa um lugar em poucas sociedades humanas. Se acabassem as touradas, acabaria a espécie.

Quando, cegamente uns e dubiamente outros, denigrem a tourada e todos os que se identificam com ela, estão, no meu entender, a prestar um mau serviço precisamente àquele que dizem defender. A acusação de barbárie, crueldade e de insensibilidade perante o sofrimento, não é nada menos do que o resultado da sua própria forma insensível de viver em sociedade. Ditadorzinhos e ditadorazinhas, que longe de benignos, apenas cuidam a sua visão de mundo, maniqueísta, redutora e unilateral.

PS: Aceito a crítica de um amigo ao recordar-me a paixão pelo touro e o profundo impacto económico na Ilha Terceira e da tradição da corrida à corda. Com efeito, a abolição da tourada nessa economia insular e pouco flexível, teria repercussões devastadoras na sua população.


Para saberes mais

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