Hoje apercebi-me, estranhamente, mas sem surpresa que, mais do que a cores ou a preto e branco, sonho em sons.
No jardim do milionário apaixonado, dormem patos e pessoas. Eles com o pescoço pousado sobre o dorso, como sabe bem aos que são patos; elas, as pessoas, aninhadas (como se estivessem à espera de nascer) numa manta rota (primeira habitação) e a cabeça, distante e justa, alheada do corpo social, vegeta livre à luz fresca de um dia sem sol nem salvação. Exalam o cansaço em ritmos ditados por biologias antigas e nuvens de invisível. Fossem os patos pessoas e não seriam dignas de nota; as pessoas dormem no jardim do milionário apaixonado desde que ele, vindo do oriente, aqui plantou o seu jardim e diminuiu.
Há um cá dentro e um lá fora, linha demarcada pelos sons que ficam e os sons que entram. Cá dentro, um verde húmido chapinha-me os olhos de vermelhos de machismo aviário de pombos e patos, dançarinos obrigados por imperativos que não compreendem, a serem incómodos até serem quistos. Lá fora, o cinza dos prédios e das ruas entra rugindo, ferido de carros e de máquinas em manobras; ora subindo de tom, ora descendo, ora cavando buracos, ora cobrindo-os de forma canibal, alimentados da mesma terra que lhes foi roubada.
Zimbro e jasmim vêm até mim trazidos por melros e andorinhas recortados no silêncio do céu do qual só não o oiço azul porque não sou alto o suficiente. Soa em mim, nos braços e no pescoço, o fresco do dia sem azul, fazendo-me hesitar entre o sonho e a edificante morte do sonho; mantenho-me no limite, entre permanecer imerso nos sons do jardim ou apanhar o comboio que me leve de volta a casa.