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Dou comigo a pensar se sobre escrevo o que penso, se escrevo o que sou, ou, por sortilégio que desconheço, escrevo somente as palavras que, como brisas, nos envolvem a todos e eu, de camaroeiro numa mão e lanterna na outra, as vou enredando nas noites de maré vaza e lua cheia que são os meus dias. Poderá ainda, o que escrevo, ser o fruto duma complexidade que manejo ignorante, qual criança que exaspera as mentes analógicas dos pais e dos avós, com a sua destreza tecnológica, que domina, mas sem saber como ou porquê.

Imagino-me, por vezes, um intérprete da natureza, a natureza das pessoas, das suas almas, ou lá o que isso possa ser. A existirem, escreverei sobre as almas escuras ou as almas alvas. Imagino sobretudo as almas escuras, que entendo serem as mais ricas e completas, porque, ainda que nunca o mostrem, se doem por serem o que são, porque se pelam perante o abismo de um qualquer juízo absoluto e se regalam com as recompensas decorrentes da sua escuridão. Serei então intérprete das vidas alheias, atento escriba dos modos e dos caracteres com que se escreve a história de nós todos e de cada um por si; de todas as histórias de todos, menos da minha; serei desta forma, cronista dos outros e cego de mim. Porque não veem os meus olhos para dentro? Porque não me vejo nos outros refletido? Houvesse razão para tal, e encontraria a minha razão enquanto ser, enquanto entidade senciente. Do que me desconheço, reconheço o disparate desta assunção, pois sou, por constatação, um entre tantos, milhões, milhares de milhões. Daí que excluo ser intérprete de outros, mas não ser cego de mim.

Escreverei em nome próprio, pelo que sou, o que faço e pelejo? Serei um mero mapeador de meu universo unipessoal, no multiverso que é a sociedade? Ver-me como um universo pessoal trás tantas vantagens como inconvenientes. Dar-me-ia trabalho, e logo, sentido para toda a vida, se do conceito de trabalho extraísse sentido, mas dar-me-ia, em igual medida, um sentimento de auto-suficiência que me empobreceria; ser universal seria, no fundo, redutor do que sou. Nada me resta senão abandonar a noção que escrevo em nome próprio, pelo que sou, o que faço e pelejo.

Poderá também, assustando-me por instantes, para logo me resignar, dar-se que escrevo porque outros o fizeram antes e, lendo-os eu, me macularam eles, com as suas palavras, me fazendo outro, novo e inédito, a cada frase, a cada página, a cada livro. Sou portanto, nada mais que papagaio arvorado, empoleirado no ombro do verdadeiro escritor, ecoando rudemente o que li e tentando perceber(-se). Ou então, serão eles, os verdadeiros escritores, mestres chaveiros dos restantes mortais que os mantêm vivos a cada página lida, a cada frase ruminada. Porque as suas palavras, mais do que palavras, são chaves. Chaves que abrem em mim, gavetas cheias de palavras próprias que não sabia ter. Antigos vedores que, armados de simples forquilhas, me guiam aos poços de palavras que, em dias bons, jorram copiosos ao mais leve roçar da terra.

O universo é tudo e porém, a sua primeira característica, para a nossa realidade, porque outras haverá, é o vazio. E poderá ser a partir desse vazio que não sinto, da experiência televisiva que é a vida dos outros, da passagem turística pelas lutas, mágoas e conquistas alheias que, do vazio, antevejo tudo. O nascer do dia numa presa de elefante, o desvanecer do desejo numa ave que passa, a incompatibilidade do ser com o seu propósito numa onda esquecida.

A razão porque escrevo ilude-me. Mostra-se diáfana apenas quando não lhe lanço o olhar. Como um minúsculo fio, imponderável na minha córnea, revelando-se apenas quando dele me abstraio.

Failure to Communicate
Sobre o olhar