“Tento ser neutro”, diz ele com os nervos, perante a verborreia, adiantada a noite e o remorso de poder estar a fazer outra coisa, do velho horroroso. Sabe no entanto que tal lhe é impossível, como lhe é impossível olhar um sonho alternativo por aquilo que ele é, sem as garras daqueles que o destruíram. E por duas razões: uma que o diminui e outra que o enobrece. É cartesiano, mas não se livra do cristianismo; é Iluminista, mas não escapa da caridade. É nobre, é justo e inconformado com a pérfida natureza humana. E isso dá cabo dele. Diminui-o enquanto pessoa completa, incapaz de perceber que, salvo muito poucos, somos todos vulgares e, sobretudo, somos todos heróis corruptos. Hércules, todos nós, capazes de grandes feitos para lavar a alma do maior dos crimes. Essa forma de estar no mundo que sabe ser único, finito e irrepetível, satura o seu ser e define a sua condição: é boa pessoa, e isso, dá cabo dele.
Ainda assim, quando diz que tenta ser neutro, quando tenta o que sabe ser-lhe impossível, revela o melhor que nele há, como um pingo de leite no universo de uma chávena de chá. Quando procura ser o que não é, quando almeja ao que se proíbe, ainda que por desespero da sua condição, por dever a quem é, eleva-se. Durante o breve que foi projetar-se no velho horroroso, fez-se homem completo. E isso eleva-o muito para lá do que é.