Há um vírus à solta entre nós. Um vírus que mina a confiança dos que não podem viver uns sem os outros. Condenados pelos genes a vivermos em comunidade, a razão apenas constrói em cima do que a natureza já moldou. A construção social é, em parceria estreita com os genes, complexidade em cima de complexidade. Daí que as relações entre indivíduos e entre indivíduos e estrutura, seja ela o que for: quadro de função, sistema formal ou interpretação cognitiva, será sempre alvo, pela sua complexidade, de ínfimas variações que as dotam, simultaneamente, de potencial para o enobrecimento ou para a destruição.
O vírus que nos tolhe, pessoal e socialmente, é, claramente, uma catástrofe. Poderá será mais do que isso? Recordo que após a pandemia de gripe espanhola (que teve origem nos Estados Unidos), o mundo ocidental experimentou uma década de desenvolvimento económico, artístico e social sem precedentes. Gosto de pensar que este vírus, com toda a sua tragédia, trará, a dez ou vinte anos, benefícios tangíveis para a vida dos seres humanos e para o nosso lugar neste planeta. Apenas assim, e nos antípodas de qualquer visão espiritual ou religiosa, consigo enquadrar toda a dor e todo o sacrifício que ocorre desde novembro de dois mil e dezanove.
Mas há um outro vírus. Um que existe desde que há pessoas que disseram “isto é meu” e encontraram alguém simples o suficiente para nele acreditarem. Esse vírus, que Sartre de forma tão simples (e ideológica) descreveu e infeta e sempre infetou portugueses simples, pode/deve hoje e no próximo domingo sofrer um sério revés.
Compreendo a tentação de ouvir respostas simples para problemas que apenas são complexos porque não há vontade efetiva para os resolver. Percebo que o vírus alastre porque a cura o engorda. Entendo que, num país eternamente Sebastianista, a mensagem que diz “isto é meu” chega a tudo que pode doer a quem quer que seja que lhe dói algo, soe a remédio para os males do mundo em cada um.
Mas não é remédio para os males que, ainda que não o sintam, são de todos. Tivermos várias estirpes deste vírus; sendo que a última veio a pedido de cordes de generais incompetentes, para salvação de um povo incauto, e durou quarenta e oito anos a erradicar. Ao que parece a vacina não pegou e ei-lo de volta, igualzinho no discurso, no enfático da voz e nas promessas vazias. Falta-lhe tão só uma bonita camisa castanha ou preta e os braços cruzados em frente ao peito. O resto é igual. Tal como é igual o apelo e o fascínio que exerce sobre os que sofrem e não conseguem entender, razoavelmente, a razão porque o seu sofrimento é cada vez mais objeto de exploração.
Os discursos, os ritos e os códigos conferem propósito, sentido e ordem aos que se sentem expropriados da promessa de bem-estar. Creio que foi Napoleão quem disse que as pessoas passam bem sem Deus mas não passam sem igreja. Quando o sistema político e os seus principais representantes assentam a sua atuação no reforço de um status quo que acentua as desigualdades, coloca entraves à mobilidade social e engana com a verdade, não é de estranhar que o vírus dos que dizem “isto é meu” alastre e prospere nas mentes dos simples que nele decidem acreditar.
Onde está então o antídoto, a vacina, o erradicador do profético, o emancipador do pensamento, o complicador das mentes, o grande despertador dos seios nasais e a revelação do esturro?
Hoje, a dezassete de janeiro de dois mil e vinte e de novo a vinte e quatro de janeiro de dois mil e vinte, em folhas impressas, cinco candidatos, uma falsa partida, uma anedota liberal e o entendemos sobre o que é o covid-19 estarão perante o nosso escrutínio. A escolha não é óbvia; tão-pouco poderá produzir frutos esperados. No entanto, há uma escolha que trará um velho conhecido, um vírus, requentado mas sempre reinventado, sempre e cada vez mais perigoso, que é preciso higienizar, antes que se torne pandémico.