Não quer dizer que seja uma invenção
… fica aqui dito, em maio de 2023, caso alguém venha a dizer que foi algo absolutamente imprevisto.
Entendo haver um plano de longo prazo, por parte dos sucessivos governos de Portugal, para entregar a saúde a entidades privadas. Como a saúde é uma conquista de abril, das boas, que a malta repararia caso fosse entregue de bandeja, e como não é possível vender o SNS da mesma forma que se venderam bancos ou barragens, porque os hospitais onde se tratam bem pessoas, com doenças graves, são sorvedouros de dinheiro, deficitários por muito bem geridos que sejam, trate-se então de colocar em marcha um plano geracional de desvalorização do SNS. Para o tornar desprezível pela população, capaz de gritar por alternativas (“– É que foi o povo que pediu, senhores deputados…”), de modo a que sejam as massas a gritar pela liberdade de serem tratados onde melhor poderão ser servidos (entenda-se aqui, sofás e sem esperas), em primeiro lugar, desvalorizam-se os cuidados de primeira linha. Dificultado o acesso aos centros de saude, seja por tempos de espera significativos para as consultas de saúde familiar e exames complementares de diagnóstico, seja por fraca resposta para a realização de consultas de reforço, obtém-se o visível, continuo e crescente fluxo de pessoas às urgências hospitalares. Tal resulta, fruto da reforçada notoriedade dada pela comunicação social, em inquietação social. Em segundo lugar, permite-se uma oferta de saúde privada, primeiro para quem pode e depois, subsidiada por enquanto por tímidas convenções com o estado e/ou uma abundância de seguros que, nalguns casos, poderão roçar o fraudulento, para os socialmente ambiciosos. Em terceiro lugar, a oferta privada, luxuosa e polida, drena dos seus quadros, imagino que a custo (leia-se investimento), os profissionais qualificados do setor público de saúde. Em conjunto, estas três ações, como fio de água, erodem cada vez mais a oferta e qualidade da saúde pública. Tal irá a prazo, resultar numa oferta de saúde pública de baixo nível e pouco eficiente. Prontamente surgirão os salvadores da pátria (de outros tempos), todos hirtos nos seus fatos caros e polos pelas costas, a apontar o direito de escolha por uma saúde moderna, humana, acessível e mais barata para o contribuinte.
O ministério da saúde noticiou, neste final de maio, por certo sob recomendação do seu CEO (um cargo muito eficiente), o fecho de alguns blocos de partos de centros urbanos (onde ainda há pessoas grávidas). Tal acontecerá durante o verão, sob o pretexto da melhoria dos cuidados de saúde às grávidas e recém-nascidos (coisa nobre) e anunciando desde logo a contratualização de serviços privados para colmatar a mais que previsível falha de oferta, é, no meu entender, um golpe magistral na política do: de vitória em vitória até à derrota final do SNS. Ou seja, mais um exemplo da forma cruel e hipócrita como os sucessivos governos dos últimos 35 anos têm depreciado o SNS. Temo o desaparecimento da terceira grande conquista de Abril, logo a seguir às duas que já se perderam, o ensino público e a liberdade.