A Europa encontra-se em permanente estado de transição. Transição social, tome-se o exemplo da sempre emergente burguesia urbana que todo o historiador gosta de apontar como gatilho para as mais variadas transformações sociais, políticas e económicas, independentemente do tempo histórico em que ocorram, assim como o, mais recente, processo de laicização das sociedades. Transição tecnológica, onde parece seguro afirmar que assentes nos contributos científicos e tecnológicos das civilizações orientais, a Europa foi o motor tecnológico da humanidade desde o século XIII e sobretudo XIV. Quanto à existência ou não de uma continuada transição política, levanta-se a questão de saber se a cultura democrática continua em processo de inculcação ou é já parte indelével do ADN cultural dos europeus. Quem ainda achar que se vive um Fim da História, que apague já a luz.
Tomado por real, pode estar nesse caráter intrinsecamente transitivo o sucesso e domínio exercido pelos povos europeus sobre outras sociedades (independentemente dos seus méritos, censuras, motivações e métodos). As guerras mundiais do século XX e sobretudo o quadro tecno-económico resultante da segunda, resultou numa organização geopolítica e definição das respectivas esferas de influência das duas potências bélicas vencedoras, na qual a Europa, vencedora mas devastada, perde parte substancial do seu poder e influência no mundo. O fim do colonialismo feudal (designação seguramente discutível) que requeria homens e violência no terreno, justificava, obrigava à manutenção de grandes exércitos europeus espalhados pelo Sul Global. A substituição deste antigo colonialismo feudal, pela ocupação e controlo económicos (não menos lesiva para os povos do Sul, mas branqueada e justificada pelas novas organizações supranacionais), retirou progressivamente à Europa, capacidade bélica. Dado a natureza ser avessa a vazios, a ausência militar da Europa no Sul Global, foi ocupada pelas duas potências vitoriosas da II GG.
Desde então, ficou patente a divisão da Europa entre essas duas potências. A divisão foi tão marcante nas esferas ideológica, social e económica, que foi superiormente descrita na imagem de um objeto impossível e, ainda assim, completamente inteligível: a cortina de ferro. A dissolução de um dos blocos, em boa parte por ruína económica, trouxe uma sensação de vitória (e fim de tempo) ao bloco cujo modelo perdurou, ainda que, como o tempo o veio a atestar, prematura e descabida.
Que podemos encontrar em finais de 2023? A potência ocidental dominante, excepcional ainda, mas em acentuado declínio externo e em processo aparentemente irreversível de dilaceração interna. Potências emergentes regionais procuram afirmar a sua voz e influência em diferentes palcos mundiais com parceiros de ocasião, para mascarar as suas óbvias fragilidades. Uma potência com um passado glorioso (entre os homens e os deuses), fez há 30 anos uma aposta de risco para se tornar política e economicamente incontornável (o que conseguiu), mas também militarmente imbatível e da qual aguardamos o resultado. Uma potência feudal que procura incessantemente, ao longo dos tempos e dos sistemas, um modelo político que justifique e valide a mão pastoril e castigadora de um César. A Europa, potência económica apenas, aproveitando a breve vitória sobre o bloco oriental, tratou de, tão rapidamente quanto possível, integrar o maior número dos países que se viram deserdados com o fim de um sistema degenerado. Essa expansão, apressada por pressão externa, não teve oportunidade ou tempo para “homogeneizar” as culturas sociais e políticas dos novos membros (atente-se às ainda patentes clivagens nos indicadores sociais e económicos da Alemanha reunificada).
Daí afirmar que uma ausência de confluência política e social, face ao mundo, mas também face a si mesma, porventura já desde o fim do colonialismo feudal, mas com ecos no Império Romano (e do seu negativo), reforçado pela Reforma (e pelo seu negativo) e, sobretudo pelo que resultou de 1989, tem impedido a Europa de fazer corresponder a sua dimensão política e militar à dimensão económica e social. Há como que um permanente dilacerar interno de vontades contrárias em que o único ponto de contacto é a obsessão pelo crescimento económico. Esta dissonância interna, esta oposição de valores é aproveitada externamente por diferentes forças, para enfraquecer o que, de outra forma, é o mais incontornável bloco social, cultural, cientifico, profundo, e rico da humanidade.
Torna-se patente um de dois caminhos (uma vez que um terceiro, o do continuo crescimento económico a expensas do Sul global, está comprometido, tanto pelo zeitgeist, como pela perda de preponderância no palco mundial). Dois caminhos então. Um primeiro, de alinhamento. Alinhamento com o imperialismo americano ou alinhamento com o neo-czarismo russo (ou neo-bolchevismo russo, à falta de melhores expressões para descrever a fénix que se renova em torno do mesmo esqueleto -matriz- social). Um segundo, de recusa de tipo qualquer alinhamento e de retorno à bandeira que sempre caraterizou a Europa -uma união tensa, conflituosa até, mas funcional e ação sobre o mundo-. Essa bandeira trás, porém, um perigo mortal. E esse perigo consiste na premissa de que a Europa apenas se conseguirá essa união no quadro de uma mentalidade conservadora e nunca por via do bolchevismo ou do sacrifício do poder das elites em favor das populações. Mentalidade onde os valores da tradição e da pureza civilizacional -étnica, religiosa e cultural- são a chave para uma identidade exclusivamente europeia, como um escudo de múltiplas bandeiras. Um perigo nacionalista, mas agregador e pan-europeu, que se afirme no mundo por oposição ao americanismo e ao neo-czarismo, homogeneizando sangue e cultura sob uma iconografia de enaltecimento da ancestralidade e superioridade míticas do não assim tão velho continente.
Esse perigo tem nome e chama-se neo-nazismo.